Há séculos, as bruxas habitam o imaginário coletivo ao redor do mundo. Elas transitam entre o sagrado e o profano, o medo e o fascínio. Mesmo cercadas por superstição e perseguição, continuam vivas nas narrativas que atravessam o tempo. As bruxas sobrevivem porque são, em essência, símbolos de resistência. Figuras que desafiam o poder estabelecido e assim colocam o feminino no centro das histórias.

Com o passar dos séculos, o que antes era considerado sacrílego passou a ser visto com reverência. A imagem da bruxa foi ressignificada, deixou de ser sinônimo de maldição e tornou-se expressão do poder feminino. A mulher que decide, cria e sobrevive. Assim, em tempos modernos, ela é tanto um arquétipo de liberdade quanto uma metáfora da mulher que se recusa a caber nos limites impostos.

Em preparação para o Halloween, revisitamos algumas das bruxas mais marcantes da literatura. Personagens que, em diferentes épocas e contextos, definiram o imaginário mágico e o transformaram em espelho da condição feminina.

As Três Irmãs Fatídicas

Criadas por William Shakespeare, as Três Irmãs Fatídicas aparecem em “Macbeth” (1606) e se tornaram um dos símbolos mais duradouros da feitiçaria literária. São elas que profetizam a ascensão de Macbeth ao trono, despertando nele a ambição que o levará à ruína. Mais do que simples mensageiras do destino, as três bruxas representam o caos e a tentação. Forças que fogem ao controle dos homens e ameaçam a ordem patriarcal.

Ao longo da peça, Shakespeare reforça o estereótipo do mal feminino, mas também insinua algo mais complexo: o medo da mulher que pensa, que manipula, que antecipa o futuro e, por isso, precisa ser silenciada. As Irmãs Fatídicas não apenas lançam um feitiço sobre Macbeth, elas o desnudam. Mostram que o verdadeiro terror está no desejo e na culpa, e não na magia.

As Irmãs Owens

Em “Practical Magic” (1995), de Alice Hoffman, a magia ganha tons contemporâneos e afetivos. As irmãs Owens vivem sob uma maldição e toda mulher da família que se apaixona perde o homem amado. No entanto, carregando o peso de gerações perseguidas, elas encontram refúgio na união e na solidariedade feminina.

Hoffman transforma a feitiçaria em uma linguagem de amor e sobrevivência. Suas bruxas não vivem em cavernas ou torres, mas em casas cheias de ervas, memórias e segredos. Elas erram, riem, cozinham poções e se protegem mutuamente. Em vez de temidas, são humanas, mulheres que herdaram a dor da perseguição e escolheram resistir através da solidariedade feminina. A obra redefine a bruxa como guardiã da vida cotidiana, uma figura de empatia e resiliência.

Elphaba

Bruxa Elphaba
Cynthia Erivo como Elphaba Crédito: Reprodução

Em “Wicked: The Life and Times of the Wicked Witch of the West” (1995), Gregory Maguire então transforma a icônica Bruxa Má do Oeste, de “O Mágico de Oz”, em protagonista de uma narrativa política e profundamente humana. Elphaba nasce com a pele verde e é marginalizada desde o berço. Inteligente e idealista, ela questiona a autoridade e denuncia as injustiças do governo de Oz.

Por se recusar a obedecer, é rotulada de vilã. Sua “maldade” é uma invenção dos poderosos, uma forma de silenciar a mulher que pensa por si mesma. Maguire reinterpreta o mito da bruxa como alegoria da exclusão e da resistência. Elphaba não é má, é a voz que incomoda, a diferença que o mundo tenta apagar. Sua história revela o lado político da feitiçaria, o poder de desafiar o discurso dominante e reivindicar o direito de existir.

Morgana

Em “As Brumas de Avalon(1983), Marion Zimmer Bradley reescreve o mito arturiano sob a ótica das mulheres. Morgana, a “bruxa” tantas vezes demonizada nas lendas de Arthur, ganha aqui um novo rosto, o da sacerdotisa de Avalon, guardiã da espiritualidade e dos saberes antigos. Sobretudo, Bradley transforma a magia em metáfora para o poder feminino silenciado pela história.

Na releitura da autora, a bruxaria é uma forma de conexão com o divino e com a natureza. Não uma prática maligna, mas um conhecimento ancestral que ameaça o poder masculino da Igreja e da guerra. Morgana é, ao mesmo tempo, sagrada e profana, humana e mística. Sua figura ecoa o movimento feminista das décadas de 1970 e 1980, quando a bruxa passou a ser símbolo da mulher livre e marginalizada pelo patriarcado.

Hermione Granger

Entre as bruxas contemporâneas, poucas têm a influência de Hermione Granger, de “Harry Potter” (J.K. Rowling, 1997–2007). Filha de pais não bruxos, ela representa uma nova concepção de magia, não como herança de sangue, mas como resultado de estudo, ética e curiosidade. Inteligente e determinada, Hermione traz à série o olhar racional e sensível da garota que aprende e ensina, que transforma conhecimento em poder.

Guiada por mentoras como Minerva McGonagall, ela simboliza o equilíbrio entre disciplina e intuição. Hermione ressignifica a figura da bruxa. Já não é uma ameaça, mas um modelo de coragem, lealdade e empatia. Em um universo ainda dominado por figuras masculinas, ela mostra que o verdadeiro poder está na sabedoria e na capacidade de questionar.

Cuca

No Brasil, a bruxaria se mistura ao sincretismo e à tradição popular. A Cuca, personagem do folclore brasileiro, nasce desse encontro entre culturas indígenas e africanas. Em versões antigas, era descrita como uma mulher velha com corpo de jacaré. Em outras, uma criatura híbrida que habita os sonhos das crianças.

Ao longo do tempo, a Cuca se tornou mais do que uma vilã. Ela representa a ancestralidade, a natureza e o poder feminino reprimido. Consequentemente, sua figura é o retrato de um país colonizado. Uma bruxa mestiça e ambígua, temida e sábia. Ela é o eco das florestas e dos rios, a guardiã dos segredos da terra. Nesse sentido, em leitura simbólica, a Cuca é a bruxa tropical, aquela que concentra o mistério e a força das vozes femininas silenciadas pela moral e pela cultura patriarcal.

Essas bruxas formam um coro que atravessa o tempo. De vilãs a heroínas, de símbolos de medo a emblemas de liberdade, elas então representam a transformação do imaginário feminino. Cada uma, à sua maneira, reencanta o mundo, lembrando que a verdadeira magia talvez resida na coragem de desafiar o destino, de nomear o indizível e de seguir viva apesar de todas as fogueiras.

Crédito: Warner Bros