Sair de casa com um bebê pequeno pode parecer uma missão impossível. Mas e se o cinema se transformasse em um espaço de acolhimento, onde mães pudessem assistir a um filme sem medo de julgamentos, com uma estrutura pensada especialmente para elas e seus filhos? É exatamente isso que o CineMaterna oferece: um projeto que transforma a experiência de ir ao cinema em um refúgio para mães com bebês de até 18 meses.
Criado em 2008, em São Paulo, o CineMaterna surgiu de forma espontânea, a partir de uma conversa entre mulheres em um grupo sobre parto humanizado e maternidade ativa. A ideia coletiva se tornou realidade pelas mãos de Irene Nagashima, mãe de dois meninos, ficou a frente do projeto desde 2017 até 2021. Hoje, a iniciativa conta com mais de 260 mães colaboradoras, está presente em 46 cidades e já recebeu mais de 455 mil adultos e 249 mil bebês em suas sessões.
Sessão para cuidar da alma
Em entrevista, Mirian Rodrigues, atual presidente da Associação CineMaterna, contou detalhes do projeto, sonhos e metas para o futuro. Além disso, ela fez uma reflexão importante sobre o resgate da mulher por trás da mãe.
“A mulher que durante a gestação era o “centro das atenções” torna-se invisível ao parir e essa dualidade confunde, podendo trazer sentimentos de solidão, insegurança e até mesmo problemas de saúde mental como o baby blues e a depressão pós-parto. A mulher que acabou de ter um bebê precisa se reencontrar, se redescobrir, pois a vida mudou 180º e não há mais como voltar ao ponto de partida: quem é ela após a maternidade?”
A proposta da associação é simples, mas poderosa. As sessões são focadas no entretenimento do público adulto, filmes exibidos em salas com volumes mais baixo, luz suave, com o ar-condicionado na medida para não incomodar. Dentro da sala a mãe pode encontrar trocadores, fraldas, e até um estacionamento para carrinhos de bebê. E depois da sessão acontece um momento de troca de ideias. “É nesse bate-papo que muitas mulheres se abrem, contam suas dores, descobrem que não estão sozinhas”, diz Mirian. Além disso, voluntárias sempre estão presentes na sala, para garantir que as mães possam aproveitar esse momento.
Para as mulheres que frequentam o projeto, mais do que cinema, é um espaço de acolhimento e reconstrução emocional. “Muitas vezes, é a primeira vez que a mãe sai de casa sozinha com seu bebê. Saber que ali ela vai encontrar outras como ela, que vai ter apoio, muda tudo”, relata Míriam.
Mas o cuidado não é somente com o ambiente ou com a escolha do filme. Ciente de que essas mulheres vêm de realidades sociais diferentes, o projeto também tenta ajudar nessa questão. “Sabemos que nem toda mãe pode pagar por esse momento, então buscamos cumprir nosso papel social”, destaca Mirian, acrescentando que as sessões possuem ingressos de cortesia, geralmente cedidos pelo shopping apoiador (entre 5 e 10 ingressos por sessão), destinados às primeiras mães com bebês de até 18 meses. Essa distribuição é antes do início da sessão e é por ordem de chegada.
Mas e em tempos de streaming, como lidar com a evasão das salas de cinema? Para Míriam, a resposta é simples, “Brincamos que o filme é só o pretexto. O que importa é sair de casa, respirar, encontrar outras mulheres vivendo a mesma fase”. Ela ainda diz que essas mulheres não saem de casa apenas para assistir a um filme, mas principalmente para resgatar uma parte da pessoa que existia antes da vida mulher com a chegada de um novo integrante.






Perguntada sobre os desafios e planos, Miriam destaca que no momento o principal objetivo é ampliar e expandir o projeto.
“A nossa missão é ‘ser um espaço de respiro em meio ao caos que a maternidade traz’ e, para isso, precisamos atingir o maior número de mulheres possível. Os demais formatos citados ainda não estão nos nossos planos, pois ainda temos bastante trabalho para realizar na nossa área de atuação.”
Confira um depoimento da Miriam sobre os 17 anos desse projeto:
Ao longo de quase 17 anos de história, já vimos muitas amizades entre mulheres-mães surgirem em uma sala de cinema. Já vimos mulheres que participaram da iniciativa como público se tornarem parte da nossa equipe de voluntárias, para oferecer às novas mães o acolhimento que tanto as ajudou em seus próprios puerpérios. Acompanhamos o crescimento dos primeiros bebês que participaram das nossas sessões e que hoje já não são “tão bebês” assim. Tudo na história do CineMaterna tem sido muito emocionante, mas sem sombra de dúvidas, quando uma mãe nos procura e nos diz que se sente segura e acolhida nos nossos encontros, quando uma mãe “cria coragem” de sair de casa sozinha com o bebê pela primeira vez, pois sabe que estaremos lá para apoiá-la, quando uma mãe nos relata que aguarda ansiosamente para participar das nossas sessões, sabemos que precisamos continuar (re)existindo. É isso que nos motiva, é isso que nos move. O CineMaterna só existe, pois há uma rede de mulheres incríveis que tornam ele realidade (do contrário seria apenas uma ideia) – todo nosso amor à “Pinks”, que são as voluntárias que organizam as sessões, recepcionam e acolhem o público.
O reencontro de uma mãe com ela mesma
A jornalista Isabela Martins Pereira, de 29 anos, mora na cidade de Belo Horizonte, e descobriu o CineMaterna ainda durante a gravidez, por indicação de um amigo fotógrafo que já havia registrado uma das sessões do projeto. Na época, a recomendação ficou guardada. Foi só meses depois, quando sua filha Maria Clara tinha cerca de seis meses, que ela viu uma propaganda do CineMaterna e sentiu algo raro naquele período: alívio.
“Era um momento difícil, cheio de hormônios, de uma nova rotina, de novos cuidados. Muda o relacionamento com o parceiro, muda como a gente se vê. A gente tenta entender quem é essa nova mulher e como incluir o papel de mãe dentro da nossa vida, que já é cheia de papéis sociais”, contou.
Para Isabela, ir ao cinema naquela fase foi uma forma de respiro. “Foi um alívio poder fazer algo para mim, assistir a um filme de adulto, ouvir uma música que não fosse para criança, relaxar. Estava também num momento de retorno ao trabalho, que é muito delicado para qualquer mãe.”
Ela participou de uma sessão no ItaúPower Shopping, após votar no filme pelo site do projeto. Mesmo sem conversar diretamente com outras mães presentes, o simples fato de dividir o espaço com mulheres vivendo experiências parecidas já fez diferença. “Eu era a única mãe no meu grupo de amigas. E por mais que a gente tente manter as relações, os assuntos mudam, o ritmo muda. No CineMaterna, me senti acolhida só por estar cercada de pessoas que entendiam minha rotina.”

A acolhida começou antes mesmo do filme. “A equipe foi extremamente receptiva, sorridente. Me fizeram sentir muito bem”, lembra. Mas o momento que mais a marcou foi ao entrar na sala: “Eu fiquei arrepiada. Tinha um cantinho preparado com trocadores, fraldas de vários tamanhos, pomadinha, lenço, lanterna. Tinham brinquedos, tatame, bolinhas… foi tão bonitinho. Um cuidado em cada detalhe.”
Isabela destaca que, embora muitos lugares digam ser “amigáveis com bebês”, poucos realmente se preparam para isso. “A maioria fala que está tudo bem levar o filho, mas não cria um ambiente adaptado. O CineMaterna cria. E mais que isso, respeita.”
Ela também se sentiu apoiada ao perceber o cuidado com o som da sessão e o suporte emocional da equipe. Quando algum bebê chorava, elas vinham ajudar, distrair, conversar. Era um apoio que, muitas vezes, a gente não tem nem dentro de casa.
Consumo cultural por mulheres e mães no Brasil
Para analisarmos o impacto da maternidade do acesso à cultura, em específico ao cinema, é necessário entender os números. Nossa equipe procurou as pesquisas de impacto cultural para entender melhor as diferenças entre mulheres dentro e fora da maternidade. Mas já podemos adiantar: mulheres que não têm filhos frequentam significativamente mais as salas de exibição do que aquelas que são mães. Segundo a Pesquisa de Cultura nas Capitais, encomendado pela JLeiva Cultura & Esporte, 64% das mulheres sem filhos foram ao cinema no último ano, contra apenas 40% entre as que têm filhos. O contraste se inverte quando o tema é exclusão: 15% das mulheres com filhos nunca foram ao cinema, quase o triplo das mulheres sem filhos (6%).
Trazendo um filtro importante para a situação, quando olhamos para a escolaridade, esses dados se acentuam: Entre as mulheres com curso superior que não têm filhos, 74% foram ao cinema no último ano, e apenas 3% nunca foram. Já entre as mães com o mesmo nível de escolaridade, a frequência cai para 63%, mantendo-se os mesmos 3% de nunca foram. Isso revela que mesmo com alto grau de instrução, a maternidade impacta a rotina cultural de forma profunda.
O cenário se torna mais desigual nas faixas de menor escolaridade. Entre as mães com ensino fundamental, apenas 17% foram ao cinema no último ano e 30% nunca foram. Já entre as mulheres sem filhos com o mesmo nível de escolaridade, 20% foram ao cinema, e 19% nunca foram. Ou seja, mesmo entre mulheres com menor acesso à educação formal, a maternidade amplia a exclusão cultural.
Os dados citados nesta reportagem fazem parte da Pesquisa sobre Consumo Cultural nas Capitais Brasileiras, idealizado pela JLeiva Cultura & Esporte e realizada pelo Instituto Datafolha entre 19 de fevereiro e 22 de maio de 2024.
Como participar do CineMaterna
Para saber mais sobre o CineMaterna, conferir a programação das próximas sessões ou entender como se tornar voluntária, basta acessar www.cinematerna.org.br. O projeto também está no Instagram e Facebook, onde compartilha fotos, histórias e novidades. Em cada sala de cinema, há mais do que um filme em cartaz, há um espaço de cuidado, empatia e reconexão para mães e bebês em seus primeiros passos juntos no mundo.
Reportagem por Mário Guedes de Almeida Junior, com apoio de Lara Aguiar