Um mergulho sufocante em um passado sangrento, onde o terror nasce das feridas históricas e ecoa como um grito ancestral.
Em um gênero tão frequentemente dominado por produções estrangeiras, “A Própria Carne” surge como um verdadeiro grito autoral do cinema nacional. Inspirando-se nas sombras da história e nos alicerces do horror psicológico e sobrenatural, o longa conduz o público a um pesadelo de raízes brasileiras. Ambientado no coração sangrento da Guerra do Paraguai, o filme transforma trauma coletivo, violência e misticismo em uma experiência sensorial que prende, perturba e permanece ecoando mesmo após os créditos finais.
Ecos de um país em guerra
Dirigido por Ian SBF e produzido por nomes conhecidos da cultura pop nacional, como Deive Pazos e Alexandre Ottoni, o filme transporta o espectador para um Brasil em ebulição. A história acompanha três desertores do Exército Imperial que, ao fugir do conflito, encontram abrigo em uma fazenda isolada. O que começa como refúgio logo se transforma em um ritual sombrio de horrores.
A ambientação é parte essencial da narrativa: o isolamento, o barro, a mata fechada e o peso histórico da guerra criam uma atmosfera sufocante e realista, aproximando o terror da nossa própria memória coletiva. O longa acerta ao tratar o passado não como cenário decorativo, mas como um elemento vivo, um fantasma que ronda os personagens a cada cena.

Horror narrativo e simbólico
Mais do que apenas violência, “A Própria Carne” trabalha com a sugestão, o desconforto e a tensão crescente. Nesse sentido, as reviravoltas narrativas são habilmente inseridas e, mesmo quando partem de arquétipos clássicos do gênero, encontram força na leitura política e histórica do país. Assim, o fazendeiro e a garota não são apenas figuras ameaçadoras, mas sim representações de uma estrutura de poder que atravessa séculos. Além disso, o roteiro, coescrito por Ian SBF, Deive Pazos e Alexandre Ottoni, equilibra um terror cru com um subtexto denso, expondo desigualdades, violências e abusos que ecoam do século XIX até hoje. Por fim, essa camada simbólica eleva o filme além do entretenimento, transformando-o em um espelho distorcido da própria nação.
Técnica impecável e estética afiada
A produção brilha tecnicamente. Pois a fotografia claustrofóbica, que valoriza sombras, lamparinas e interiores fechados, cria um ambiente que parece respirar junto com os personagens. E a trilha sonora de Govis, já conhecido pelos fãs de Nerdcast RPG, conduz a tensão como um fio de navalha: cada acorde pressiona o espectador contra a cadeira. Os efeitos práticos, aliados a intervenções visuais pontuais, conferem ao longa um acabamento impressionante. A brutalidade é mostrada com precisão cirúrgica, remetendo a produções do selo A24 e também evocando uma semelhança do cinema de Dennison Ramalho, um nome forte no terror nacional atual.

Elenco intenso e hipnotizante
O filme se sustenta sobre interpretações marcantes. Luiz Carlos Persy rouba a cena como o fazendeiro, sua voz grave e sorriso torto constroem um vilão tão carismático quanto perturbador. Jade Vasconcelos (Garota) também entrega uma performance memorável, criando uma antagonista silenciosa, mas profundamente inquietante.
O restante do elenco, embora enxuto, contribui com energia e convicção, reforçando o tom intimista e opressivo da história. O trio de desertores funciona como um reflexo das fragilidades humanas diante do poder e do desconhecido.

Identidade, simbolismo e terror brasileiro
Um dos méritos de “A Própria Carne” está em como abraça sua identidade nacional sem medo. A guerra, a desigualdade, a violência estrutural e a opressão racial compõem camadas narrativas que tornam a experiência rica e complexa. O horror aqui não é importado: ele nasce da nossa própria terra, das feridas históricas nunca cicatrizadas.
Essa força autoral dá ao longa um peso raro no cinema de gênero nacional, aproximando-o mais de um rito coletivo do que de um simples espetáculo de sustos.

Vale a pena assistir?
Sim e muito. “A Própria Carne” não é apenas um terror eficiente: é um terror necessário. Denso, simbólico e tecnicamente impressionante, o filme marca um novo patamar para o gênero no Brasil. É uma obra que convida o público a olhar para o passado e sentir seus ecos no presente, enquanto se entrega a uma narrativa arrepiante. Prepare-se para sair do cinema com a sensação de ter participado de um ritual macabro, e com a voz grave do fazendeiro ecoando em seus ouvidos.
A Própria Carne estreia nos cinemas exclusivamente pela rede Cinemark no dia 30 de outubro de 2025.
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Imagens da capa e corpo da crítica credito: Jovem Nerd/Nebula Filmes
