Entre cenas cotidianas do racismo velado e uma pitada de terror ficcional, o filme nos deixa tensos do início ao fim

O Oscar 2018 foi palco para estampar pioneirismo, com Jordan Peele levando o prêmio de Melhor Roteiro Original. O diretor e roteirista de “Corra!” foi o primeiro homem negro a receber o prêmio dentro da categoria. Até aquele momento, roteiristas negros levaram apenas o prêmio de Melhor Roteiro Adaptado.

Esse acontecimento veio só após a campanha #OscarSoWhite, de 2015, que pedia mais diversidade nos escolhidos pela Academia. A ironia é que Peele, merecidamente, levou este Oscar ao estampar em seu filme “Corra!” o racismo velado — assim como o que acontecia na premiação.

A história de “Corra!”

A trama nos apresenta a Chris (Daniel Kaluuya), um homem negro estadounidense que namora Rose Armitage (Allison Williams), uma mulher branca. Já no quinto mês de namoro, Rose decide que é hora de Chris conhecer seus pais. Mas conhecer os sogros estando em um relacionamento interracial não é uma questão simples.

Com o passar da história, vemos o desconforto de Chris em um ambiente majoritariamente branco, onde as únicas pessoas pretas são funcionários da casa. O racismo da família aparece em cada fala e trejeito, levando Chris a ficar cada vez mais desconfortável dentro daquela situação. No entanto, o enfrentamento da questão racial não é o único problema de Chris naquele momento, que depois se vê tendo que lutar pela sua própria vida.

Como Peele explora o terror cotidiano

É intrigante a forma como Peele trouxe uma situação cotidiana para dentro do terror, misturando em certos momentos com comédia — especialidade do diretor, que antes trabalhava com sketches. Ele escancarou cenas cotidianas do racismo velado. Como quando o patriarca da família, Dean Armitage (Bradley Whitford), menciona que “votaria no Obama pela terceira vez, se pudesse”, só para se reafirmar diante de uma pessoa negra.

A pauta racial no mundo é questão de sobrevivência. Casos extremos como os de George Floyd, Genivaldo de Jesus Santos, João Pedro Mattos Pinto e muitos outros são recorrentes. Segundo a Rede de Observatórios da Segurança, pessoas negras de 9 estados do Brasil totalizavam 90% dos mortos pela polícia em 2023. Nesse sentido, vemos que o terror de “Corra!” acontece principalmente no suspense psicológico decorrente do cotidiano em que essa personagem está inserida.

É nesse ponto que Jordan Peele trabalha bem o terror: ele traz, com clareza, as “sutilezas” racistas de uma relação interracial.

O racismo velado

Na segunda vez em que vemos o filme, conseguimos compreender melhor como tudo o que é feito e falado é intencional. Como quando o pai de Rose comenta que o avô perdeu uma corrida para o medalhista olímpico Jesse Owens e que ele “quase superou isso”. Mais tarde, vemos que o ressentimento de ter perdido para uma pessoa negra fez com que escolhesse estar no corpo de um homem negro com porte atlético para corrida.

É também a partir das primeiras conversas que o filme ilustra como aquela família — metida a Ku Klux Klan — vê o corpo preto como um mero produto de mercado. O irmão de Rose, Jeremy (Caleb Landry), por exemplo, monopoliza o assunto no jantar de família para saber se Chris era bom de luta, afirmando que, com “aquele porte e carga genética, se treinar pesado, sem enrolação, ficaria um monstro”.

Vemos isso até mesmo na forma como Chris foi apresentado aos convidados da festa que é tradição familiar. A todo momento, eram exaltadas características dele ou até mesmo parecia ele estava sendo avaliado de alguma forma. Daí vem uma das cenas mais emblemáticas: quando Chris está sendo leiloado durante a festa, em um claro paralelo com os leilões de escravos de antigamente. É após esse momento que somos melhor introduzidos ao terror ficcional do filme, que, assim como a crítica que faz, cumpre muito bem seu papel.

O terror ficcional

A situação de Chris em uma casa estranha nos deixa, desde o princípio, em alerta. Sentimos a atmosfera de que algo anormal está acontecendo ali. Afinal, os familiares de Rose parecem estar o tempo todo performando para agradar Chris e os empregados em um tipo de transe.

De fato, esse transe que assola as únicas pessoas negras do local é assustador, e temos um vislumbre disso quando a mãe de Rose (Catherine Keener) hipnotiza Chris. Ela deixa Chris desconfortável, mexe com sua vulnerabilidade e, então, quase que literalmente, entra na cabeça dele. Sentimos junto essa aflição de quem vê, de longe, a loucura daquele ambiente que parece o tempo todo gritar: “corra”.

Por fim, devo acrescentar também que, para um terror que excepcionalmente entregou crítica e conceito, o fato de ter mesclado tudo isso ao humor é um diferencial que deixou tudo mais singular. O amigo de Chris, Rod Williams, personagem de Lil Rel Howery, é o alívio cômico do filme — e que alívio! Ele funciona como o telespectador, que a todo momento percebe que “tem caroço nesse angu”. Nada melhor, para tornar a jornada do público mais interessante, do que inseri-lo ainda mais dentro do contexto que por si só já nos desconcerta. 

Vale a pena assistir?

O suspense psicológico nos filmes de terror é um elemento que, quando bem trabalhado, nos prende na trama, e “Corra!” traz essa característica de maneira original. O roteiro foi preciso no momento de desenvolver a crítica social dentro do gênero de terror. Assim, o filme transmite com excelência o sentimento de agonia, injustiça e desespero desde os primeiros minutos. Mesmo que você seja uma pessoa branca e nunca tenha sentido na pele o que Chris passa diariamente, Peele trouxe exatidão para passar até para o público mais leigo alguns dos sentimentos que pessoas negras passam – mesmo que no filme em um contexto “exagerado” de ficção.

Imagem de capa: Reprodução