Cyclone não é um filme que busca facilidades, ele abraça a densidade da vida de Maria de Lourdes Castro Pontes, a Miss Cyclone. Se compromete com o peso de ser mulher, artista e corpo político em um tempo que insistia em negar tudo isso. A narrativa escolhe seguir pelo caminho mais profundo, aquele que entende que a história dela só pode ser contada se encararmos a dor, a ambição, a potência e a violência que a atravessaram. Essa escolha não torna a obra dura, torna justa.
Um retrato denso e sensível
A diretora Flávia Castro constrói um olhar progressista, mas nunca panfletário. Há consciência histórica na maneira como ela retrata o ambiente masculino que cercava Miss Cyclone, e há cuidado ao reconstituir a jovem que se tornou símbolo sem querer. E justamente porque, naquela época, mulheres não eram tratadas como autoras, apenas como presença decorativa ou mão de obra silenciosa. O filme deixa claro que Cyclone não foi exceção, foi vítima de um sistema que apagava mulheres antes mesmo do primeiro sopro de criação.
Os temas são tratados de forma direta, misoginia, machismo, aborto e o roubo intelectual, um dos pontos mais dolorosos do longa. A obra mostra como textos, ideias e fragmentos criativos de Cyclone eram muitas vezes assinados por homens, absorvidos por eles sem culpa, transformados em capital simbólico por quem já carregava privilégios. É um lembrete incômodo de que a história literária brasileira foi construída sobre silêncios impostos.

Um retrato duro e honesto de um Brasil que ainda insiste em se repetir
A fotografia abraça a estética de época e aposta em tons escuros e sépia para calibrar a passagem do tempo, criando um clima que mistura melancolia e memória. Essa paleta não pesa o filme, ela ajuda a situar o espectador na costura entre o real e o imaginado, na fronteira entre documento e ficção. Além disso, a trilha sonora segue o padrão de muitos bons filmes brasileiros, discreta, afinada, presente no momento certo, completando a respiração emocional das cenas.
Luiza Mariani entrega uma Miss Cyclone honesta, vulnerável e persistente, capturando a inquietação de uma mulher que queria existir como autora em um país que não aceitava que mulheres existissem como criadoras. Há dor no olhar, mas há também ambição e luta, e a atuação equilibra tudo isso quase que com teatralidade. A direção de Flávia Castro mantém esse tom consistente, sem exageros, guiando a narrativa de modo sensível, colocando Cyclone no centro da própria vida, finalmente.
Cyclone é um filme sobre resgate, não sobre redenção. Não tenta limpar a tragédia, não tenta suavizar a violência do apagamento. O que faz é devolver humanidade à jovem que inspirou debates, desconfortou intelectuais e morreu cedo demais. No fim, o maior mérito do longa é lembrar que toda história silenciada ainda pode encontrar uma voz, mesmo que chegue tarde. E essa voz, agora, é dela.
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