Entre o vício das drogas e o vício do próprio cinema em clichês, “King Ivory” tenta ser denúncia e acaba sendo reflexo
Há filmes que erram por ousar demais, e há os que erram por medo de sair do lugar. “King Ivory”, de John Swab, é o segundo tipo. Ele tenta ser duro, sombrio e cheio de propósito, mas tropeça na própria pretensão. O resultado é um thriller moral sobre drogas, crime e paternidade que nunca encontra sua própria voz.
O olhar de fora: o fentanil e a América ferida
Como brasileiro, há uma camada que me escapa. O filme trata da crise do fentanil nos Estados Unidos, uma tragédia social que, por mais noticiada que seja, não tem o mesmo peso cultural por aqui. Talvez por isso “King Ivory” soe mais distante. Para o público americano, a trama pode carregar um impacto emocional e político muito maior, porque traduz o medo real das ruas e o colapso das cidades afetadas pelo vício.
E, nesse ponto, talvez Swab acerte. O filme captura o caos urbano, o retrato da polícia ostensiva como resposta ao desespero, e faz ecoar histórias conhecidas de Chicago e Detroit. Há também uma camada social importante: como os imigrantes mexicanos são inseridos nesse sistema, empurrados para o papel de “mulas” ou pequenos traficantes, enquanto o consumo segue americano. O filme toca nessa ferida, mesmo sem aprofundar.
Como ação, “King Ivory” entrega ritmo. Desde o início, o espectador é lançado em um frenesi de perseguições, prisões e tiroteios. É intenso, mas raso. E quando o roteiro tenta respirar, o vazio aparece. É o tipo de ação que entretém, mas não emociona.
Swab parece fascinado pela ideia de decadência, mas não sabe o que fazer com ela. O protagonista, vivido por James Badge Dale, transita entre o policial rígido e o pai desesperado, sem convencer em nenhum dos dois papéis. Sua apatia é tamanha que, quando descobre o vício do filho ou enfrenta o líder do cartel, reage com a mesma frieza. É como se o filme tivesse medo da dor humana.
A câmera sofre de abstinência. Tremida, instável, caótica até nas cenas mais simples, transforma a experiência visual em um pesadelo técnico. Não há estilo, há descontrole. E não é o tipo de descontrole criativo que dá nervo, parece uma tentativa sincera de fazer um filme de câmera na mão, para passar o dinamismo real, mas quando isso acontece em qualquer oportunidade, deixa de ser algo pensado para ser algo exagerado.

O fim sem glória e o eco da realidade
O final, à primeira vista, parece um desastre. Mas, observando com calma, talvez Swab tenha escolhido deliberadamente esse caminho. A “reviravolta” que não acontece é, na verdade, um gesto de humanidade. O diretor parece querer mostrar que o grande vilão é apenas mais um homem. Não há heróis nem monstros, apenas a rotina burocrática da violência e da lei.
Essa opção narrativa, ainda que tire força dramática, carrega uma honestidade rara. O filme termina com uma prisão comum, sem glória, sem catarse, como se dissesse que aquele traficante capturado é apenas um nome riscado da lista — e que amanhã haverá outro em seu lugar. É um ciclo sem fim.
Swab ainda sugere que existe alguém maior, um chefão invisível, comandando tudo de dentro da prisão. É um detalhe que dá dimensão ao sistema, e que para nós, brasileiros, soa familiar. Essa sensação de que o crime nunca acaba, só muda de rosto, é talvez a parte mais verdadeira do filme.
Vale a pena assistir?
“King Ivory” é o retrato de um cinema que quer parecer sujo, mas é apenas raso. Fala sobre vício sem entender dependência, fala sobre moral sem ter ética narrativa. Ainda assim, há lampejos de algo sincero em sua tentativa de olhar o crime sem glamour. O filme entende que, por trás dos números e da violência, existem pessoas. Mesmo quando erra, esse gesto de humanidade impede que “King Ivory” seja só mais um tiro no escuro.
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Imagem de capa: Roadside Attractions
