Você já parou para reler as dedicatórias dos livros que guarda na estante? Elas carregam mais do que datas e nomes, funcionam como pequenos arquivos emocionais do que éramos quando recebemos ou entregamos esses presentes. Talvez você lembre de alguma dedicatória que escreveu para alguém, talvez nem a pessoa tenha percebido o significado. Às vezes o peso está mais em quem escreve do que em quem lê.
Livros Restantes se debruça exatamente sobre essa memória afetiva. Marcia Paraiso dirige um filme sobre passado, presente e futuro, mas sobre especialmente a sutileza de encerrar ciclos. A obra é leve no ritmo, intensa no olhar e profundamente humana, algo que o cinema brasileiro domina com maestria quando transforma pequenas histórias individuais em janelas para experiências universais.
Não existiria Ana Catarina sem Denise Fraga
Denise Fraga interpreta Ana Catarina, uma professora orgulhosa de sua trajetória, cujo vínculo com a literatura atravessa sua vida pessoal e profissional. Às vésperas de partir, ela decide desapegar de seus laços afetivos devolvendo cinco livros, cada um para a pessoa que marcou seu percurso. Não é despejo, é gesto, é entrega. Ela os devolve como presentes, como última assinatura de sua passagem pela vida dessas pessoas. O filme lembra que nem todas as relações guardam o mesmo peso emocional, já que algumas dedicatórias significaram muito mais para Ana do que para quem inspirou aquelas páginas.
Esses cinco livros representam relações distintas: um ex-namorado egoísta, uma amiga que esteve presente nos momentos mais difíceis, uma amizade que nunca foi verdadeira, um grande amor, e o ex-marido com quem ainda mantém laço constante pela filha que compartilham. Não há romantização, há enfrentamento. Ana revisita lembranças e devolve ao mundo aquilo que carregou por tempo demais, encarando cada capítulo com franqueza, sem varrer nada para debaixo do tapete.
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Não existe melhor cenário que o próprio Brasil
A fotografia abraça essa jornada com naturalidade quase documental, registrando um vilarejo litorâneo que vive da pesca e do turismo, sem glamour, sem exotismo, apenas cotidiano. E nessa simplicidade surge uma das escolhas mais bonitas do filme: ele naturaliza o ato de ler. Livros não são acessórios cultos, são extensões da vida comum. Quem lê aqui não é só o intelectual estereotípico, mas o pescador, a vizinha, o ex-marido. A literatura aparece como linguagem acessível, como janelas e portas que se abrem para mundos possíveis, sem a aura elitista que muitos filmes insistem em impor ao universo literário.
Isso conversa diretamente com o orgulho de Ana Catarina pela docência. Ser professora não é um detalhe biográfico, é identidade. Sua relação com livros, conhecimento, memórias e despedidas nasce dessa vocação. O filme educa sem didatismo, ensina sem discurso explicativo, inspira sem tentar ensinar. É educativo sem parecer aula, é pedagógico sem quadro negro.

Vale a pena assistir?
A direção de Marcia Paraiso aposta em closes, diálogos prolongados e silêncios que revelam mais do que explicam. Escolhe o natural, a vida como ela é, e justamente por isso permite que o público se veja nos gestos e nas ausências. É cinema de espelhos, onde o drama não precisa de grandes eventos, apenas humanidade.
No fim das contas, Livros Restantes é uma poesia filmada sobre recomeços possíveis em qualquer fase da vida. Trata de memória e desapego, de livros que voltam para quem os inspirou, de histórias que continuam mesmo quando decidimos partir. É sobre deixar ir, mas também sobre continuar existindo através das páginas que escrevemos nos outros. Mais um belíssimo filme que o cinema nacional nos presenteia.
Fotos de Capa e Texto: H2O Films | Filmógrafo | Plural Filmes
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