Falar de Pessoa e seus heterônimos pode soar fantasioso. E isso ocorre também com o filme Não Sou Nada (The Nothingness Club) adaptação cinematográfica de Edgar Pêra. O diretor abraça sem pudor o absurdo vívido e intoxicante desse cenário psicológico.

Fernando Pessoa é um gigante da literatura portuguesa, sendo um dos poetas mais importantes do século XX. Na verdade, Pessoa não foi apenas um, mas vários poetas. Sua obra é repleta de figuras literárias que ele chamava de heterônimos – entre eles, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Esses não eram meros pseudônimos: para Pessoa, eram indivíduos inteiros. Eles possuíam personalidades próprias, que conviviam em sua mente, compartilhavam amizades, disputas e influenciavam-se mutuamente.

O Clube do Nada

Não sou nada foto 2
Imagem: Reprodução

O Clube do Nada, que dá nome ao filme, é um escritório com painéis de madeira, repleto do ruído incessante de máquinas de escrever, operadas por homens vestidos de forma semelhante. Todos os homens possuem traços que oscilam entre o levemente semelhante e o idêntico ao do próprio Pessoa (Miguel Borges). Nesse espaço também ficam Caeiro (Miguel Nunes), Reis (Vítor Correia), de Campos (Albano Jerónimo) e outras figuras como o astrólogo Baldaya (Miguel Moreira).

O único refúgio desse microcosmo é um bar esfumaçado, onde as emoções transbordam. Fora dali, parece não haver mundo. E, por mais que o filme intercale cenas no clube com outras ambientadas em um hospital psiquiátrico, tudo indica que se trata de uma dimensão mais profunda da mente recriminadora do próprio poeta. Já que o próprio Pessoa, aos 20 anos, escreveu: “O medo da loucura já é uma forma de loucura.”

Um trama caótica e fragmentada

Nesse equilíbrio denso e frágil, sempre acompanhado por uma trilha de piano melancólica, surge Ofélia (Victoria Guerra), que atravessa os diferentes territórios da mente de Pessoa. Ela é, simultaneamente, a femme fatale que desestabiliza o Clube do Nada e a enfermeira cuidadosa da instituição. Surpreendentemente, à medida que Pessoa tenta manter controle sobre seu universo interior, tudo começa a desmoronar, com heterônimos mortos e Álvaro de Campos mergulhando numa espiral cada vez mais violenta e insana, levando o filme a um delírio visual e narrativo.

Não Sou Nada (The Nothingness Club)
Imagem: Reprodução

Assim, Pêra abusa intencionalmente de exposições duplas, sobreposições fragmentadas e uma direção visual caótica. A produção tenta unir o real com a ficção, especialmente quando, perto do fim, Pessoa digita a última frase que escreveu antes de morrer, em 1935, por intoxicação alcoólica. No entanto, o próprio filme já avisa: trata-se de um “cinenigma”. É impossível encontrar uma narrativa linear nesse sonho febril que é o filme. O melhor conselho vem do próprio Pessoa: “Segue-me com cautela.”

Vale a pena assistir Não Sou Nada?

Não Sou Nada deve ser entendido como uma experiência cinematográfica. Não é um filme para assistir a qualquer momento. Para os fãs de Fernando Pessoa é um prato cheio e atraente. Para quem não conhece muito sobre o autor, pode ser cansativo e confuso. De toda forma, a produção, certamente, é uma porta de entrada para o universo literário de Pessoa.