O Homem Mais Feliz do Mundo trabalha a ambiguidade, a fragilidade humana e o peso da memória
Alguns filmes, de início, parecem apenas uma proposta narrativa curiosa, como um encontro às cegas em um hotel, por exemplo. Mas, à medida que se desenrola a trama, revela-se como potente alegorias sobre memória, identidade e feridas históricas. Esse é exatamente o caso de O Homem Mais Feliz do Mundo (The Happiest Man in the World).
O longa começa como uma comédia estranha sobre conexões humanas e rapidamente se transforma em um retrato profundo das cicatrizes deixadas pela guerra da Bósnia, onde cada gesto cotidiano ainda carrega o peso do passado.
O Homem Mais Feliz do Mundo (The Happiest Man in the World) é um drama de 2022, escrito e dirigido por Teona Strugar Mitevska, em colaboração com a roteirista Elma Tataragić. É uma coprodução internacional envolvendo Macedônia do Norte, Dinamarca, Bélgica, Bósnia e Herzegovina, Croácia e Eslovênia.
A produção foi selecionada pela Macedônia do Norte como candidato ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2023. Venceu o Grande Prêmio do Júri (Grand Prix of the Jury) e o Prêmio da Jovem Comissão (Youth Jury Prize) no Festival Europeu de Les Arcs em 2022. No Festival de Cinema da Eslovênia (Festival of Slovenian Film, Portorož), recebeu prêmios Vesna como melhor filme (co-produção minoritária), além de prêmios de figurino (best costume design) e maquiagem (best make-up).
A história do filme

Inicialmente, o filme parte de uma premissa bem simples. Temos Asja, uma mulher de meia-idade, que participa de um encontro às cegas, em busca de romance. Lá, ela conhece Zoran, um homem reservado e perturbado, cujo verdadeiro objetivo está longe de ser amoroso. Ao longo da dinâmica, com perguntas clichês de casais e jogos de aproximação, surge um passado comum que conecta os dois de uma forma bem dolorosa.
A narrativa se constrói nesse choque entre a leveza forçada do evento de encontros e a gravidade desse passado em comum. O que começa como quase uma comédia de costumes se transforma rapidamente em um embate de memórias, culpas e pedidos de perdão. O espectador acompanha a desconstrução do “homem mais feliz do mundo” até que se escancare a impossibilidade de apagar certas marcas.
O título O Homem Mais Feliz do Mundo traz toda uma ironia dolorosa. O “homem mais feliz” não é alguém pleno ou realizado, mas sim Zoran, um personagem corroído pela culpa e pelo peso de suas escolhas no passado. A felicidade aqui não passa de fachada, um contraste cruel com a realidade das feridas abertas que tanto ele quanto Asja carregam. É justamente nessa contradição entre o título e o conteúdo, que o filme tem sua maior força. Ele busca expor, com amargura e sensibilidade, o quanto a guerra roubou, fazendo com que um título simples não seja verdadeiro.
As consequências da guerra civil iugoslava
Historicamente, o longa mergulha nas cicatrizes abertas pelo cerco de Sarajevo, entre 1993 e 1996. A guerra civil iugoslava não é retratada em batalhas, mas em suas consequências íntimas, atravessando décadas e sobrevivendo nas relações cotidianas. Ao optar por não mostrar a guerra diretamente, Mitevska escancara o peso invisível que ainda se impõe sobre aqueles que tentam seguir adiante.
Esse retrato também funciona como denúncia escancarando a banalização do ódio e a manipulação de identidades religiosas e nacionais que levaram vizinhos a se tornarem inimigos mortais. O filme lembra que a história não é só feita por generais e exércitos, mas por adolescentes forçados a atirar e por civis comuns transformados em vítimas e algozes.

Direção e roteiro
Mitevska entrega em O Homem Mais Feliz do Mundo uma obra que carrega não só uma preocupação pelos detalhes como também uma intensidade emocional. Sua direção é precisa, considerando que ela transforma um espaço simples, um hotel em Sarajevo, em palco de libertação histórica e íntima. Entretanto, toda essa preocupação da diretora, juntando com a forma em que o drama ocorre, pode não agradar muito o público.
Temos um equilíbrio entre delicadeza e brutalidade, o que cria uma atmosfera pesada. Assim, a alternância entre momentos de quase leveza e explosões emocionais mantém o espectador em suspense.
O roteiro, coescrito com Elma Tataragic, é conciso e afiado, revelando aos poucos os laços entre Asja e Zoran, numa espécie de thriller psicológico por trás de um drama mais intimista. Zoran não é apenas um vilão, e Asja não é só vítima. O roteiro trabalha a ambiguidade, a fragilidade humana e o peso da memória. Esse equilíbrio torna o filme mais humano e menos panfletário, mesmo quando o tema poderia facilmente cair em excessos.
Elenco e fotografia
Jelena Kordic Kuret e Adnan Omerovic, brilha com atuações bastante reais e humanas. Sem exageros, cada olhar, silêncio e hesitação pesam tanto quanto os diálogos. Kuret, entrega uma performance marcante. Sua Asja é um poço de contradições. Ela é vulnerável, irônica, apaixonada e, sobretudo, ferida. Já Omerovic, encarna Zoran, um homem dilacerado entre arrependimento e obsessão. A fotografia de Martin reforça essa dualidade, com enquadramentos que alternam proximidade sufocante e planos distantes que lembram a solidão das personagens.
Esses recursos visuais e interpretativos transformam o hotel em um espaço de encontros forçados, marcado por tensões invisíveis, onde passado e presente colidem em cada detalhe. A câmera nervosa e os cortes abruptos criam uma sensação de instabilidade que reflete a própria ferida aberta da guerra.

Vale a pena assistir “O Homem Mais Feliz do Mundo” ?
Vale a pena assistir? Sim. O Homem Mais Feliz do Mundo não é um filme fácil, mas é necessário. Ele exige do espectador uma entrega emocional, mas recompensa com uma reflexão profunda sobre culpa, perdão e o legado da guerra.
Para quem procura apenas entretenimento leve, pode soar muito pesado demais. Particularmente, eu passei metade do filme pensando se estava gostando ou não da produção. Mas para quem valoriza cinema que provoca, questiona e mexe com feridas ainda pulsantes da humanidade, trata-se de uma experiência poderosa. No fim, não se trata de felicidade, mas da coragem de encarar os fantasmas do passado.
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Crédito da capa: Pyramide Films / Adaptação