Um horror social banhado de silêncio, culpa e rachaduras familiares

Em “O Sítio” (La Quinta), o horror nasce do que é íntimo, doméstico, encoberto. Sabe aquele filme onde a crueldade brota dentro da família, com aquele silêncio cúmplice, violência herdada, e a podridão emocional que insiste em vazar pelas frestas? É sobre isso o que o filme fala. A obra da diretora argentina Silvina Schnicer, recusa respostas fáceis e exige um espectador alerta, paciente e disposto a encarar o que não é dito. É aquele terror que não se esconde atrás de sustos, nem entrega monstros explícitos.

O filme acompanha Rudi (Sebastián Arzeno) e Silvia (Cecilia Rainero), que viajam com os três filhos, Martín, Federico e Silvina, para a antiga casa de campo da família. A promessa de um fim de semana bucólico rapidamente se desfaz quando eles descobrem sinais de invasão, objetos deslocados e a presença inquietante de Tomás (Alejandro Gigena), o zelador do bairro que parece carregar mais segredos do que funções. Mas o verdadeiro ponto de ruptura vem da liberdade perigosa que as crianças recebem: em meio ao mato, ao fogo e a ruínas esquecidas, elas cometem um ato trágico que o filme deliberadamente evita mostrar. E é nessa lacuna que Schnicer encontra seu terreno fértil.

O terror de uma família em ruínas

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Crédito: Divulgação

Silvina Schnicer abandona qualquer pretensão de conforto e nos arrasta para dentro de uma família que implode lentamente, como madeira velha estalando antes de virar cinza. O filme não trabalha com sustos, trucagens ou efeitos manipulativos, ele opera no campo do incômodo, naquilo que se infiltra pela fissura, naquilo que o olhar tenta desviar mas não consegue.

A diretora transforma o espaço rural em um organismo vivo, quase hostil onde a paisagem é cúmplice, testemunha e algoz. Nada ali existe apenas como pano de fundo. Tudo reage, pressiona e denuncia. E é justamente nesse ambiente, aparentemente controlado por tradições e aparências, que os personagens revelam suas fragilidades, seus recalques e a violência que carregam como herança e destino.

Schnicer filma a família não como unidade, mas como território minado. Cada gesto, cada silêncio e cada deslocamento dentro da casa sugere uma história enterrada, um segredo, uma culpa familiar que ninguém ousa nomear. O horror aqui não é sobrenatural, é afetivo. É estrutural. É o horror do que chamamos lar, mas que às vezes funciona mais como prisão. O filme não busca explicar as coisas. De certo modo, é bom, mas também ruim. Muitas histórias secundárias acontecem, sem nenhuma explicação. Elas estão lá por estar. Para causar o incômodo.

A força no Festival do Rio

Durante sua exibição no Festival do Rio, O Sítio consolidou-se como uma das obras mais perturbadoras e politicamente afiadas do evento. O público saiu dividido entre o silêncio e o desconforto, aquele tipo de sensação que só aparece quando um filme realmente cutuca feridas sociais reais.

A estética rigorosa, a fotografia quase árida e a maneira como Schnicer estrutura a tensão sem entregar válvulas de escape colocaram o longa entre os destaques da programação. O festival reforçou o que o filme já deixava claro: Schnicer está construindo uma assinatura poderosa dentro do cinema argentino contemporâneo, misturando crítica social, violência simbólica e uma sensibilidade narrativa que gira entre o sublime e o devastador.

Horror social como espelho

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Crédito: Divulgação

“O Sítio” é, antes de tudo, um filme sobre poder, quem tem, quem acha que tem, quem perde e quem tenta disfarçar que nunca teve. E Silvina Schnicer, com sua precisão quase cirúrgica, desmonta esse jogo a partir do cotidiano, mostrando que monstros não precisam de dentes afiados quando já possuem sobrenome, herança e cercas.

É um filme que permanece com o espectador porque ele não oferece respostas. Ele só abre portas, e deixa que cada um enxergue o que preferir. Temos trauma, falência moral, fragilidade humana e simplesmente uma família que nunca foi tão família assim.

Temos um pai que possui uma certa mania de relaxar, ou fugir de seus problemas entrando pelado na piscina. Inclusive, na minha opinião, cenas desnecessárias. Não precisava focar no nu visível, a diretora poderia ter apenas sugerido o nu. Em um filme em que metade do elenco principal são crianças, tais cenas pegam um pouco mal. Temos uma mãe regrada, de certa forma submissa, que inveja o relacionamento dos outros, por talvez o dela estar em ruínas. Temos crianças com segredos ocultos e tendências mórbidas. São muitos mistérios que simplesmente existem e não são explicados.

Vale a pena assistir “O Sítio”?

“O Sítio” está em cartaz nos cinemas.

Crédito da capa: Divulgação / Adaptação