Se somos todos filhos de Deus e se Deus é amor, porque é tão difícil amar, ou ao menos respeitar o próximo? Essa é a pergunta que me vem à cabeça ao assistir o documentário brasileiro “Toda Noite Estarei Lá”. A produção foi gravada entre 2018 e 2022 e acompanha Mel Rosário, uma mulher trans, que após sofrer uma agressão transfóbica, luta incansavelmente pelo direito de frequentar os cultos de uma das igrejas da Assembleia de Deus em Vitória.
A direção e roteiro são de Suellen Vasconcelos e Tati Franklin. Mel Rosário protagoniza o documentário, mostrando todo o seu trabalho artístico e político.
Enquanto luta por justiça, Mel encontra brechas para se reinventar e sobreviver no Brasil bolsonarista.
Um retrato do ultraconservadorismo político e religioso
O foco do documentário é a luta de Mel Rosário contra os ideais religiosos de fiéis extremistas. Em momento algum é sobre a religião em si. O objetivo é mostrar como ainda existem líderes religiosos que podem ser cruéis, mostrando todo o seu preconceito e intolerância disfarçados como sendo as palavras de Deus, e propagando isso para seus fiéis.
Não tem como falar de “Toda Noite Estarei Lá” sem esbarrar também na questão política. O documentário foi gravado em um período de governo de extrema direita, onde o presidente eleito não media suas palavras para expressar sua “opinião” em relação à população LGBTQIAP+. Dessa forma, com um líder extremista, uma parte de seus seguidores, acabam se sentindo mais fortalecidos para propagar mensagens de ódio, de preconceito, de discriminação, de intolerância contra o próximo.
Acompanhar o dia a dia de Mel Rosário, após ser expulsa e praticamente jogada nas ruas por um representante da igreja à qual frequentava, é sufocante. Ver a sua luta tanto nas idas e vindas ao fórum para as audiências, quanto nas manifestações em frente à essa igreja com cartazes sobre amor, respeito e também denunciando a transfobia cometida pela igreja é só um pedacinho do que diversas pessoas travestis e trans ainda sofrem em todo o nosso país.
Algo que gostei bastante do documentário, foi a preocupação em mostrar que essa intolerância não está em todos os fiéis. Mel durante toda a sua luta retratada, conquista o respeito de diversas pessoas, inclusive fiéis da igreja à qual ela fica diariamente na porta fazendo os protestos. Isso tudo reforça que o preconceito está nas pessoas e não na religião em si.
A busca pela reflexão e pelo o diálogo
Toda Noite Estarei Lá” transforma Mel Rosário em uma figura heroica, forte, que mesmo diante de todas as dificuldades, está agarrada à sua fé e luta para poder expressá-la. As pessoas travestis e trans sempre existiram na sociedade e precisam de respeito e de terem seus direitos garantidos.
É fato que a produção busca trazer um diálogo com as pessoas que pensam que uma vida pode valer menos do que a outra. Que se sentem superiores, e marginalizam outros grupos. O documentário busca expandir o olhar dos conservadores. E diante disso, repito o que coloquei no inicio dessa crítica: Se somos todos filhos de Deus, e se Deus é amor, porque é tão difícil amar, ou ao menos respeitar o próximo? Fica aí a reflexão.
Durante o desenvolver do documentário, vemos vitórias e derrotas, vemos pessoas irredutíveis em relação à forma de pensar, mas também aquelas que acabaram se afastando da igreja, pelos pensamentos preconceituosos e intolerantes de seus pastores.
Em um momento, uma das amigas de Mel fala com ela algo do tipo: “Porque você não vai para outra igreja? Tem tantas que te aceitariam”. Eu entendo a Mel, seria muito mais fácil desistir de uma igreja e ir para a outra. Mas esse movimento seria apenas uma aceitação da derrota. Ao persistir em seu direito, Mel consegue atingir às pessoas, aos fiéis, sobre como é importante a reflexão, o quanto é importante o amor e o respeito ao próximo.
Um documentário necessário
Ao ver o documentário, é notória tanto a luta de Mel, quanto das diretoras e a equipe de produção. Até porque, não era somente a Mel que estava correndo riscos ao fazer seus protestos em frente à igreja. Em diversos momentos percebe-se toda uma tensão da gravação, seja nas ruas à noite acompanhando Mel, seja acompanhando às lutas no fórum. O fato de não ter a autorização para filmar as audiências, os questionamentos agressivos das partes envolvidas, fazem com que o espectador se sinta dentro de tudo aquilo que está acontecendo.
Por mais que seja um documentário, algo de fato real, não posso deixar de destacar a desenvoltura de Mel Rosário. Surpreendentemente, ela consegue ficar à vontade em frente às câmeras que estão acompanhando o seu dia a dia, sua rotina, sua luta.
A direção, roteiro e montagem de “Toda Noite Estarei Lá” foram muito bem feitos, fazendo com que os 72 minutos de duração voassem. Em momento algum me desprendi da produção. Além disso, outro ponto positivo é a sensibilidade ao abordar as questões de família. Mostrar a interação de Mel com sua mãe e família, seus sonhos e planos para o futuro somam para que a produção seja única.
Senti falta de um pouco sobre o passado de Mel, a produção já começa diante do problema em questão. Só sabemos que Mel é uma mulher trans, cabelereira e está lutando pelo direito de ir ao culto da igreja que ela frequentava antes da expulsão. Talvez se tivessem explorado um pouco mais de seu passado, o documentário talvez ganhasse mais força ainda. De toda forma, compreendo a decisão das diretoras em iniciar a produção a partir de tal momento.
Vale a pena assistir “Toda Noite Estarei Lá”?
“Toda Noite Estarei Lá” é um documentário que deve ser visto por todos, sem restrição. Ao trazer um pouco da realidade das pessoas travestis ou trans para o cinema, as diretoras conseguem levantar a importância do assunto para toda a sociedade.
Lembrando que só através do diálogo e do debate que a sociedade consegue evoluir, sendo justa e democrática. E para isso, é necessário igualdade, respeito e tolerância entre todas as pessoas.
“Toda Noite Estarei Lá” estreia nos cinemas brasileiros no dia 30 de maio. Além disso, a produção foi exibida em sessões de pré-estreia em algumas igrejas batistas.
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