O documentário da Netflix, “As três mortes de Marisela Escobedo” estreou na plataforma no dia 14 de outubro de 2020. É necessário fazer com que esse documentário seja lembrado todos os anos. Principalmente no dia que representa a luta das mulheres e contra a violência de gênero.
O início
Marisela Escobedo Ortiz, já mãe de dois filhos, tinha acabado de se formar em enfermagem quando se mudou para a cidade de Juárez, no México, após receber uma proposta de trabalho em um hospital da cidade. Considerada uma das cidades mais violentas do mundo, principalmente se tratando de violência contra a mulher.
Na cidade onde “ser uma mulher aqui é carregar uma sentença de morte” como é dito no documentário da netflix, ela seguiu a vida, tendo mais três filhos.
Até que, nesta mesma cidade, após ajudar Sergio Barraza com um emprego na madedeira que possuía. Sua filha caçula, Rubí Escobedo, de 13 anos conheceu rapaz de 20 anos, e começaram um relacionamento, mesmo sem a aprovação da mãe.
Em 2007 a caçula engravidou de Sérgio, e toda a família ajudou o jovem casal. Marisela deu aos dois, um pequeno apartamento que possuía e os ajudava sabendo da dificuldade financeira.
Tudo seguia bem — ou parecia — até agosto de 2008, com dois anos de relacionamento, Rubí desaparece.
Sérgio alegava que a garota havia fugido com outro homem. E a polícia não aceitava iniciar as investigações, aceitando a alegação do ex companheiro da jovem. Um mês depois, Marisela e sua família conseguiram fazer uma queixa na delegacia de desaparecidos.
Mas, o que de início seria apenas mais um desaparecimento em Juárez, ou a fuga de uma menina, se revelou um feminicídio. Após o telefonema e encontro com um jovem que afirmava ter ouvido de Sérgio e de seu irmão, que havia matado a companheira e desovado seu corpo em um terreno após o queima-lo. Assim, dando início a uma luta de Marisela que duraria dois anos contra todo um sistema de impunidade, corrupção e falhas.
‘Las muertas de Juárez’
Rubí também foi uma das ‘las muertas de Juárez’ (as mortas de Juáres) como é chamada a onda sem fim de feminicídios na cidade do estado de Chuahuhua, no México. Assim como a Rubí, as vítimas são meninas e mulheres entre 15 e 25 anos, que antes de serem mortas, sofriam tortura e eram violentadas.
No mês de maio de 1993 teve o registro da primeira vítima, Gladys Janeth Fierro, de 12 anos. Violentada e estrangulada. E com o passar dos anos os números permaneciam altos, a violência se mantinha em destaque e as autoridades não faziam.
Para compreender a violência de gênero na região, é preciso entender os fatores que contribuem para seu aumento. Além das questões culturais que fortalecem o machismo e os papéis tradicionais de gênero, pode-se considerar o crime organizado como um dos responsáveis pelo alto número de violência no México.
Ciudad Juárez é sede do Cartel de Juárez, um cartel de drogas mexicano que atua através da fronteira entre os Estados Unidos e México. Assim, se tornando então uma ameaça constante para as mulheres da região.
Tanto que, Sergio Barraza, se uniu a grupos de narcotraficantes “Los Zetas”, agora sendo chamado de “Comandante Bambino”. Nessa posição, se manteve protegido da justiça, já que o grupo criminoso controlava a corporação da polícia na região. Informação essa que Marisela conseguiu através de um informante. Dando então, início as ameaças voltadas para Marisela e sua família que se mantinham no encalço de Sergio, buscando por justiça.
O fim de Marisela e início de um símbolo
Após dois anos investigando, protestando e lutando pela justiça não só do caso de feminicídio da sua filha, mas do tráfico humano, da violência de gênero e feminicídio por todo o estado. E sem muitas alternativas, Marisela monta um acampamento no jardim na frente do Palácio do Governo, no dia 5 de dezembro de 2010
Apesar de reconhecer o perigo de ficar tão vulnerável no acampamento, ali se manteve atraindo a atenção de todos e da imprensa, era sua última alternativa. Deixando claro que estava sob ameaça, Marisela em uma entrevista diz: “Se ele me quiser matar, que me assassine aqui neste lugar em frente ao palácio para vergonha dos políticos.” O que restava era esperar qual viria primeiro, a morte ou a justiça.
Com toda a mobilização, o governador César Duarte faz fez com que o então Procurador de Justiça do Estado receba Marisela. Na reunião, a mulher conta todas as informações que conseguiram através da investigação feita por ela. E como resposta, a promessa de finalmente receber justiça.
Chega 16 de dezembro, e enquanto faziam preparativos para o natal ainda no acampamento, Marisela tinha planos de comprar um árvore de natal. Entretanto, aquela não seria uma noite como todas as outras. Por volta das oito da noite, o grupo se arruma, recolhendo os cartazes, é então que um carro branco se aproxima e tudo é flagrado pelas câmeras de segurança.
Um homem sai do automóvel, e depois de uma pequena perseguição que se estendeu até Marisela atravessar a rua, um disparo é feito em direção a sua cabeça, e o corpo da mãe de Rubí caí na calçada. Na frente das câmeras, de seu irmão, ao lado dos carros que passavam e “em frente ao palácio para vergonha dos políticos”, como a mesma disse.
Apesar do toda a luta, Marisela foi assassinada, não pode ver o assassino de sua filha ser condenado e o mesmo aconteceria com seu assassino. Entretanto, ela se tornaria a face de uma luta no México, um símbolo.
A luta continua
Sendo considerada pelos filhos uma mulher guerreira, através de seus feitos, é impossível negar a força que Marisela Escobedo Ortiz. Quando a mulher reúne forças, mesmo tendo todos os motivos para desistir, permanece insistindo para que a justiça fosse feita, pelo amor que sentia por sua filha. E que enfrentou tudo e todos, até o fim de sua própria vida, lutando por nada mais do que justiça.
Mas que infelizmente, apesar de toda a sua luta, os números de vítimas continuam crescendo. Em 2010, no ano da morte de Marisela, foram 303 feminicídios. Até novembro de 2020, ano em que o documentário foi estreado, foram oficialmente 860 mortes segundo dados da Secretaria Executiva do Sistema Nacional de Segurança Pública do México (Sesnsp).
Segundo um estudo da Associação Mexicana contra a corrupção e a impunidade, entre 2012 e 2018, apenas 1,5% dos culpados cumprem pena. Em um país onde morre entre 10 a 11 mulheres por dia, vítima de feminicídio.
Entretanto, não é motivo para não continuar lutando. E em meio a tantas injustiças, no não há dia melhor para relembrar de uma mulher que lutou sem medo da morte, e ouvir Marisela: “Saiam de dentro das suas quatro paredes. Se uma porta se fecha hoje, amanhã outra se abre. E procurem justiça até ao último canto da terra. Para que as nossas filhas possam viver em liberdade, para que não sejam vítimas de violência, muito menos de homicídios.“