Na última semana comemoramos o Dia Nacional do Quadrinho e, para entender melhor como a data foi criada e o cenário atual dos quadrinhos no nosso país, entrevistamos José Alberto Lovetro. Conhecido como Jal, José Alberto Lovetro é o presidente da Associação dos Cartunistas do Brasil. Cartunista e jornalista, ele foi um dos criadores da data e defende ainda hoje a importância dos quadrinhos.

Confira a entrevista com José Alberto Lovetro

O que levou a criação do Dia do Quadrinho Brasileiro?

No mesmo momento, convocamos o desenhista Ofeliano de Almeida para pesquisar na Biblioteca Nacional do RJ sobre um precursor dos quadrinhos chamado Angelo Agostini. E se confirmou que ele publicou muito antes do que “Yellow Kid” que os americanos diziam ser o ponto inicial dos quadrinhos no mundo. Angelo Agostini já publicava histórias quadrinizadas em São Paulo no jornal “O Cabrião“, mas foi no semanário “Revista Fluminense” que ele publicou em 30 de janeiro de 1869 (“Yellow Kid” é de 1895) o primeiro capítulo de “As aventuras de Nhô Quim – ou impressões de uma viagem à Corte“.

Antes disso, na era da impressão de Gutemberg, temos na Suíça o autor Rodolphe Töpffer com uma publicação de seu personagem em “Os amores do Sr. Vieux Boisa” em 1937. Então tivemos a ideia de criar o Dia do Quadrinho Brasileiro na data de 30 de janeiro, e para fundamentá-la criamos o Troféu Angelo Agostini, que por estes anos divulgou a data e a fez ser comemorada em todo o Brasil anualmente. Atualmente, conseguimos que a data seja incluída no calendário oficial do Brasil.

Como era o cenário dos quadrinhos no Brasil quando a data foi criada?

Os anos oitenta foram especiais para o quadrinho e mais ainda para o quadrinho brasileiro. Além de revistas importantes como “Animal” e livros com material europeu de vanguarda, tivemos a febre “Chiclete com Banana” de Angelí e Toninho mendes, “Piratas do Tietê” de Laerte, “Geraldão” de Glauco e muitas outras publicações coletivas dos desenhistas que vieram de fanzines e da área independente.

Conquistamos um público enorme de adolescentes porque até então os quadrinhos brasileiros eram mais representados por Ziraldo com e Mauricio de Sousa. Resultado desta efervescência, em 1988 eu e o Gualberto Costa fomos convidados para participarmos do programa TV MIX na TV Gazeta de São Paulo para uma coluna sobre quadrinhos, ao vivo, e ficamos por dois anos entrando duas vezes por semana no programa TV MIX apresentado por Astrid Fontenelle e à noite por Serginho Groisman. Foi quando tivemos a ideia de criar um novo troféu nacional chamado HQMIX. Tudo começou nos anos 80.

Os quadrinhos no cenário atual

Você enxerga uma mudança nesse cenário hoje?

O que eu vejo hoje é uma grande produção de quadrinhos brasileiros, resultado dos anos 80, por autores independentes de grande qualidade. E as publicações são na mesma qualidade das produzidas por grandes editoras, tanto que são mais de 1.500 inscrições para concorrer ao Troféu HQMIX que já está em sua 37ª edição em 2025. Inclusive, as inscrições estão abertas neste momento.

Na sua visão, o mercado tem espaço para novos profissionais?

Sempre há e sempre haverá. Depende do autor não ficar fechado em sua casa, mas observar quem são os seus leitores para se modular para cada vez ganhar novos leitores. Hoje tem o virtual onde já se pode publicar sua história sem gastos de impressão para testar personagens e ideias novas. É estudar e saber como chegar a esse público.

Eles não caem do céu, mas precisam ser conquistados com muito trabalho. E nunca desvalorizem os quadrinhos considerados mais comerciais porque eles são alavancas para que ganhemos leitores novos ou pelo menos mantermos os que já existem. Sem isso, os trabalhos vão para as gavetas, creio que ninguém quer fazer quadrinhos para consumo próprio. Justamente porque o legal é compartilhar seus pensamentos com um público só seu.

Neste ano, em outubro, será lançado o filme sobre a vida do Mauricio de Sousa. A história do filme mostra justamente o início de como ele começou. Talvez as pessoas só vejam o cara de sucesso e esquecem de ver que em muitos anos ele batalhou sem grana e sem apoios para chegar onde chegou. Eu vi o primeiro corte do filme e está bem legal. O Mauro, filho do Mauricio, que é ator, também o interpreta de forma especial. Mesmo porque ele é a cara do Mauricio em seu início de carreira.

O Futuro dos Quadrinhos

Tendo em vista os avanços tecnológicos mais recentes, como você enxerga o futuro dos quadrinhos no Brasil?

Nós melhoramos muito nos roteiros nos últimos anos. Éramos carentes nesta área porque muitos copiavam o que vinha de fora do Brasil. Agora estamos com uma identidade nossa e isso é o mais importante. Então, vejo o futuro já acontecendo, apenas observando onde chegamos.

Grandes desenhistas sempre tivemos há muito tempo, basta vermos o Angelo Agostini de 1869. O que temos que trabalhar bastante agora é discutir de que forma podemos absorver o impacto da Inteligência Artificial para o autor da área e também como o mercado vai acontecendo na substituição do papel pelo virtual. No Brasil, ainda não há grande público para a leitura de quadrinhos no virtual, justamente porque o gostoso é ter seu exemplar para colecionar e poder ler mesmo quando acaba a energia.

Então, vejo o futuro já, e o mais distante é praticamente impossível de saber porque as coisas acontecem com uma rapidez que já está difícil absorver de imediato. Mas uma coisa posso dizer, as pessoas sempre vão precisar de histórias que as levem para aventuras além da realidade e por isso o cinema vive de muitas versões de personagens dos quadrinhos.

Como a Associação dos Cartunistas do Brasil apoia novos talentos? Existem projetos em desenvolvimento nesse sentido?

Nossa Associação dos Cartunistas do Brasil é de voluntariado. O desenhista não consegue nem pagar uma mensalidade devido à inconstância de seus trabalhos. Por isso, a base da Associação fica dentro do HQMIX com alguns serviços e informações básicas. Lá dá para ler um livro gratuito “Guia do Ilustrador” organizado pelo desenhista Ricardo Antunes, com depoimentos de vários desenhistas importantes sobre como se preparar para o mercado de trabalho.

Embora seja um livro feito há muitos anos e não atualizado sobre a internet, por exemplo, tem conceitos básicos para um autor ser considerado profissional. Tem também informações sobre direitos autorais e até uma tabela-base de preços para negociação com editores e apoiada pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo.

Fora isto, o próprio Troféu HQMIX nestes 36 anos de vida, e que é o mais conceituado no país, tem uma função primordial de vitrine para a grande produção no Brasil e seus autores. Tanto que, apenas sendo uma das 10 indicações em cada categoria, já é festejada por quem está na lista como uma premiação. Para manter este troféu nestes anos e sem patrocínios, o SESC SP tem uma importância capital e, junto com o Serginho Groisman, nosso padrinho, dá uma credibilidade ao mesmo que vai além de quem gosta de quadrinhos. Fora isso, temos várias pessoas que amam os quadrinhos e que nos ajudam nestes anos, mesmo sem receberem algum pagamento.

Os Quadrinhos e os Leitores

Como você enxerga a relação entre os quadrinhos e a formação de leitores?

Tem algo que às vezes as pessoas não percebem. Os desenhistas ficam focados em seus trabalhos e não observam como funciona o mercado. Em primeiro lugar, não existe mercado se não existirem leitores. E como conquistar leitores nos tempos atuais onde o exagero de informação que chega às pessoas faz com que todos fiquem linkados apenas nos celulares e computadores, onde a leitura tem que ser o mais rápida possível?

Por isso, é importante saber que o mercado tem que ter os puxadores de leitores que geralmente trabalham com os quadrinhos de produção com grandes tiragens. Ao mesmo tempo, tem que ter o novo para que os leitores tenham opções após serem conquistados.

O papel afetivo do quadrinho no Brasil

O Brasil é um dos países, no mundo, que mais tem leitores de quadrinhos impressos. Quem é o grande responsável por isso é o Mauricio de Sousa, que ainda hoje vende cerca de 12 milhões de exemplares por ano de seus gibis impressos. Ele conquista o leitor de quadrinhos em sua tenra idade, antes mesmo da alfabetização.

Com isso esse leitor nunca vai perder essa experiência que começa com os pais lendo as historinhas para eles antes de dormir e ficam ligados ao sentimento gostoso de lembrar a infância lendo quadrinhos até o final da vida. Esse leitor conquistado é quem vai sustentar o mercado para que desenhistas que queiram começar a publicar aos 18 anos, por exemplo, já tenham leitores formados com esse hábito.

Porque o leitor não lê apenas um autor, ou não haveria tantos livros e títulos publicados. Ao contrário, o leitor gosta de ter outras referências da mesma linguagem e é isso que sustenta o mercado para o novo que surge dos independentes. Muitos fazem uma leitura rasteira sobre o mercado achando que o Mauricio domina o espaço e esquecem que, ao contrário, ele é quem sustenta a base de leitores de que os novos desenhistas precisam para mostrar seu trabalho.

O Quadrinho e a Educação

Eu e a professora Sonia Luyten, criadora do curso de Editoração de Quadrinhos na ECA-USP nos anos 70, fizemos anos atrás um mergulho em duas escolas da periferia que a Secretaria Municipal da Educação nos passou para que em três meses aplicássemos a linguagem dos quadrinhos como ferramenta educativa para qualquer matéria ministrada pelos professores.

O resultado deste trabalho é tão rico que escrevemos um livro que está gratuito pela leitura virtual. Basta entrar no site Efeito HQ e passar o email para recebê-lo. Tem apoio do Ziraldo e do Mauricio de Sousa. Todos que gostam da linguagem dos quadrinhos precisam ler, mesmo porque é de leitura rápida e direta.

As histórias em quadrinhos são essenciais para ajudar no ensino no Brasil, de uma forma que agrada a todos, alunos, professores, diretores e famílias dos alunos. O resultado foi de evolução de até 10% para bons alunos, que já têm bom rendimento. Mas para alunos que não conseguem evoluir e são dispersos, a evolução da absorção de informações passadas na sala de aula é de até 100%. E isso é ouro porque pode ser conseguido sem um real sequer gasto. É gratuito. E os desenhistas são os professores que podem entrar nas escolas para cursos especiais. É onde ganhamos leitores pelo resto da vida. Às vezes a solução é mais simples do que imaginamos.

O Quadrinho e a Literatura

Há uma antiga discussão que coloca em questão se HQ é literatura. Qual sua opinião sobre o assunto?

Quadrinho também é literatura. Afinal, leitores são leitores. Assim como livros infantis, necessitam de grandes desenhos acompanhando os textos para que a criança tenha uma experiência de mergulho na história. É cinema, porque qualquer filme precisa agora de um storyboard para ser executado, onde o diretor terá a visão de planos a serem filmados em cada cena.

Quadrinhos são arte porque tem desde técnicas de arte que vai de um simples personagem a desenhos que são verdadeiros quadros elaborados, colagens, fotos, etc. É teatro porque o leitor interpreta por si só o “time”, a entonação dos personagens e sua voz, o som imaginado e no seu tempo de entendimento, o que não ocorre no teatro ao vivo. Quadrinhos são design porque roupas e objetos são criados nos quadrinhos e vão para a moda nas lojas pelo mundo.

Quadrinhos é inovação porque têm linguagem própria e foram a base para a POP ART nos anos 70. As onomatopeias e outras linguagens próprias ultrapassam a barreira do som. Enfim, quadrinhos é uma linguagem única e os muitos anos do “Sítio do Pica-Pau Amarelo” publicados pela Editora Globo mostram que até Monteiro Lobato, ícone da literatura infantil, foi redimensionado para um novo público que nem o conhecia antes.

Um conselho

O que você diria para quem está começando a carreira agora?

Hoje, com a possibilidade de obter informações sem ter que sair de casa, ajuda muito, mas também deixa a pessoa preguiçosa. O mundo não acontece no computador, mas na vida lá fora. Nunca se acomode com o que vê pelas telas porque elas enganam bastante a realidade. Portanto, sair e conhecer o mundo a cores e ao vivo é essencial para quem quer ser um autor e trabalhar com comunicação.

Ao mesmo tempo, é importante saber utilizar as redes sociais a seu favor para ganhar leitores. E leiam muitos outros autores, grandes autores. Vejam bons filmes que não repetem roteiros. E criem algo diferenciado para sair do lugar-comum. As pessoas querem novidades e não sabem o que já sabem.

Sobre a utilização da Inteligência Artificial, é importante não ficar refém dela para ganhar trabalhos. Porque a IA trabalha com o passado, que são os trabalhos que foram feitos por vários autores e fazem um mix para oferecer um produto que copia a criatividade. Só o ser humano, ainda, é capaz de criar o futuro e ir além do usual. Nunca percam isso de vista. É importante vocês assistirem aos bate-papos que vamos fazer neste mês de fevereiro, começando dia 01 na Biblioteca Parque Villa Lobos em SP, sobre três temas atuais do mercado podem ser acompanhados ao vivo pelo YouTube.