Mais do que representatividade, personagens e histórias LGBT no cinema e na TV têm provocado reflexões sociais e aberto espaço para artistas que antes eram invisibilizados

A representação LGBT no cinema e na televisão passou por transformações profundas nas últimas décadas. Se antes personagens LGBTQIAPN+ eram invisíveis, estereotipados ou coadjuvantes sem complexidade, hoje há um movimento crescente em direção a retratos mais honestos, diversos e protagonistas.

Essas mudanças não só refletem a realidade de uma sociedade em transformação, como também contribuem para moldá-la, abrindo espaço para artistas, roteiristas e diretores que antes estavam à margem da indústria.

Antes que o movimento por diversidade ganhasse força no audiovisual, personagens LGBTQIAPN+ surgiam em contextos bem mais restritivos, muitas vezes retratados com estereótipos ou tratados como figuras trágicas.

No entanto, mesmo dentro de um cenário conservador, alguns filmes e séries ousaram desafiar o status quo, abrindo caminho para as representações mais livres e plurais que vieram nas décadas seguintes.

Antes de Brokeback: o cinema LGBT que abriu caminho

O impacto da presença LGBT no cinema e na TV
Jake Gyllenhaal e Heath Ledger em cena de O Segredo de Brokeback Mountain, marco do cinema LGBT | Foto: Reprodução/IMDB

No cinema, O Segredo de Brokeback Mountain (2005) costuma ser citado como divisor de águas, e de fato foi. Mas antes dele, filmes como O Beijo da Mulher-Aranha (1985), com William Hurt interpretando um homossexual preso durante a ditadura militar brasileira, já colocavam no centro da narrativa personagens LGBTQIAPN+ com profundidade emocional. O longa rendeu a Hurt o Oscar de Melhor Ator, num momento em que esse tipo de papel raramente recebia prestígio da crítica.

Nos anos 1970, The Rocky Horror Picture Show (1975) se tornou um fenômeno cult ao celebrar a liberdade sexual, o camp e o queer de maneira irreverente e transgressora. Com personagens que desafiavam normas de gênero e sexualidade, o filme influenciou gerações. Ele abriu espaço para narrativas ousadas e para a celebração da diversidade sexual em meio a um cenário cultural ainda bastante conservador.

Nos anos 1990, Minha Vida em Cor-de-Rosa (1997), produção belga, deu voz a uma criança que expressava sua identidade de gênero de maneira livre, tratando da transgeneridade com empatia e sensibilidade, algo raro na época. Já Festa de Família (1998), do movimento Dogma 95, abordou temas delicados como abuso e sexualidade em um ambiente familiar, ampliando os debates sobre identidade em contextos adversos.

Entre os ícones lésbicos do período, podemos pensar em Corky e Violet, do cult Ligadas pelo Desejo (1996), filme dirigido pelas irmãs Wachowski antes de sua transição de gênero. A produção foi um marco por colocar duas mulheres em um relacionamento homoafetivo sem reduzi-las a estereótipos ou puni-las narrativamente por sua orientação.

Os passos iniciais da diversidade na TV

O impacto da presença LGBT no cinema e na TV - Will e Grace
Eric McCormack e Bobby Cannavale em Will & Grace marcaram uma geração | Foto: NBC Universal/Divulgação

No campo da TV, embora as limitações fossem ainda maiores, algumas produções buscaram escapar da invisibilidade. Em Ellen, sitcom protagonizada por Ellen DeGeneres, a personagem principal se assume lésbica no episódio “The Puppy Episode” (1997). O momento teve grande repercussão midiática. A revelação coincidiu com o fato de que, na mesma época, a própria atriz assumiu publicamente sua homossexualidade. Ellen se tornou, então, uma das primeiras grandes estrelas de Hollywood a fazer isso.

Outras produções também deixaram marcas. Em Will & Grace (1998), personagens gays foram apresentados de forma carismática e cômica, conquistando o público e permanecendo no ar por oito temporadas. Mesmo com limitações, a série ajudou a naturalizar a presença de personagens LGBTQIAPN+ em programas de grande audiência.

Ainda antes disso, Soap (1977–1981) causou polêmica ao incluir um personagem abertamente gay, Jodie Dallas, vivido por Billy Crystal. Embora envolto em estereótipos e contradições narrativas, Jodie foi um dos primeiros personagens fixos LGBTQIAPN+ da TV americana e provocou importantes discussões públicas.

Embora muitas vezes os personagens LGBTQIAPN+ dos anos anteriores a 2000 fossem secundários, caricatos ou trágicos, essas representações serviram como ponto de partida. Elas abriram brechas, desafiaram tabus e inspiraram gerações futuras a escreverem e viverem histórias mais completas, e mais humanas.

Hoje, olhando para trás, é possível reconhecer nesses fragmentos do passado os alicerces sobre os quais se constrói o presente. Cada nova representação importa porque não surge do nada. Ela é fruto de uma longa trajetória de resistência, coragem e vontade de existir – com luz, com câmera e com toda a diversidade.

Vozes em cena: a força da representatividade LGBT+ nas telas

O impacto da presença LGBTQIAPN+ nas artes - Carol
Cate Blanchett e Rooney Mara em Carol deram vida a um romance entre mulheres na década de 1950 | Foto: Reprodução/IMDB

A sigla LGBTQIAPN+ é vasta, e sua presença nas telas hoje em dia ainda é desigual. No entanto, personagens marcantes ao longo da história mostram que a diversidade pode, sim, estar no centro das tramas.

Um dos exemplos mais lembrados é o de Harvey Milk, vivido por Sean Penn no filme Milk – A Voz da Igualdade (2008), que resgata a trajetória do primeiro político abertamente gay eleito nos Estados Unidos. O longa, além de histórico, humaniza as dificuldades e vitórias de uma geração que lutava contra o apagamento.

No campo da ficção, Carol (2015) trouxe à tona o romance entre duas mulheres na década de 1950, em uma narrativa delicada e com profundidade emocional. Call Me by Your Name (2017) conquistou público e crítica com o amor entre Elio e Oliver, reforçando que relações entre homens também podem ser retratadas com lirismo e vulnerabilidade.

Ambos os filmes são bons exemplos de como histórias gays e lésbicas podem ser universais, sobre afeto, amadurecimento, separações e reencontros.

Da margem ao protagonismo: a diversidade LGBT+ nas séries atuais

O impacto da presença LGBT no cinema e na TV - Pose
Pose fez história ao trazer para o centro das telas a cultura ballroom e a força da comunidade trans | Foto: Reprodução/IMDB

No universo das séries, The L Word (2004–2009, com revival em 2019) foi pioneira ao mostrar um grupo de mulheres lésbicas vivendo suas alegrias, conflitos e desejos. A produção abriu portas para debates sobre sexualidade, saúde, maternidade e identidade.

A série Heartstopper (2022–atualmente), baseada nos quadrinhos de Alice Oseman, ganhou destaque ao retratar com sensibilidade o romance entre dois garotos adolescentes. Além disso, a produção inclui personagens bissexuais e trans de forma natural e acolhedora.

Falando em visibilidade trans, a série Pose (2018–2021) é um marco. Com o maior elenco trans já reunido em uma produção de TV, incluindo MJ Rodriguez e Dominique Jackson, a série mergulha no universo dos ballrooms nova-iorquinos. Além disso ela também traz à tona questões como HIV, racismo, família e resistência. É um exemplo claro de como a inclusão real, com pessoas trans interpretando personagens trans, fortalece a autenticidade das narrativas.

Nomi Marks, de Sense8, interpretada por Jamie Clayton, e Jules Vaughn, de Euphoria, vivida por Hunter Schafer, representam avanços importantes na visibilidade trans na televisão recente. Ambas ajudaram a ampliar debates sobre identidade de gênero, saúde mental e pertencimento com sensibilidade e profundidade. Elas abordam temas como identidade de gênero, relacionamentos e saúde mental com sensibilidade e complexidade.

Personagens bissexuais também ganharam espaço nos últimos anos. Piper Chapman, de Orange is the New Black (2013-2019), e Rosa Diaz, de Brooklyn Nine-Nine (2013-2018), ajudam a combater o apagamento da letra B na sigla. Em Sex Education (2019-2023), a personagem Ola Nyman (Patricia Allison) é pansexual, mostrando que outras orientações também podem e devem ser representadas com respeito e verdade.

A presença LGBT que transforma narrativas

Lina Pereira em Vitória
Linn em Vitória representando a força e a autenticidade das vozes LGBT no cinema brasileiro | Foto: Sony/Divulgação

Importante destacar que a representatividade não deve se limitar à frente das câmeras. Roteiristas, diretores e produtoras LGBTQIAPN+ são fundamentais para que essas histórias ganhem profundidade e autenticidade.

Além disso, a presença de figuras públicas como Elliot Page, que se assumiu trans em 2020, e da atriz e cantora trans brasileira Linn da Quebrada, contribui para ampliar o debate sobre identidade, inclusão e pertencimento em diferentes frentes da indústria cultural.

Mais do que números ou estatísticas, a diversidade nas telas é um reflexo, e um motor, de transformação social. Quando pessoas LGBTQIAPN+ se veem representadas com respeito, não só se sentem reconhecidas, como ajudam a construir uma sociedade mais plural, empática e justa.

Que venham mais histórias, mais personagens e mais vozes. Afinal, ninguém deveria precisar sair de cena para existir.

Imagem de capa: Murray Close/Netflix