Em entrevista ao GeekPop News, autora fala sobre linguagem, deslocamento e o desafio de escrever um romance entre culturas

Rafaela Tavares Kawasaki, autora do livro “Venha ver a revoada”, compartilhou seu processo de escrita da obra com o GeekPop News. Escritora com trabalhos em prosa fictícia e poesia, morou no Japão por 14 anos e decidiu explorar a sua trajetória pessoal na literatura. O livro “Venha ver a revoada” é seu segundo romance. Assim, a obra acompanha a história de uma nipo-brasileira que, vinte anos após deixar Gunma-ken, retorna à província e deve lidar com o que ela deixou para trás.

Confira a entrevista com Rafaela Tavares Kawasaki:

Rafaela, você pode se apresentar para os nossos leitores nas suas próprias palavras?

Nasci em Araçatuba, no interior de São Paulo e aos quatro anos, me mudei para o Japão pela primeira vez com a minha família. Tive uma infância, adolescência e vida adulta nesse entrelugar, dividida entre a experiência de vida entre os dois países. Acredito que essa vivência influencia muito minha escrita, quando escrevo diretamente como esses deslocamentos migratórios. E, também, quando trabalho temas como isolamento, estranheza nas relações humanas, memória ou incomunicabilidade. Além disso, acredito muito em um trabalho de escrita que integra pessoas. Isso se intensificou quando me mudei para Curitiba e comecei a fazer parte do coletivo de pessoas quem escrevem, “Membrana”.

Ao longo dos últimos anos, esse ofício da escrita literária resultou em três livros publicados. Publiquei o livro de contos “Enterrando gatos” (2018) pela Editora Patuá, o romance “Peixes de Aquário” (2021), pela Editora Urutau e o livro de poesia “Memórias de Água” (2025) pela Telaranha Edições. Agora, estou divulgando o meu segundo romance, “Venha ver a Revoada”, selecionado e apoiado pelo Edital Rumos 2023/2024 do Itaú Cultural.

O que te motivou, pessoalmente, a transformar sua experiência de 14 anos no Japão em uma obra de ficção?

Há muito tempo acredito que eu ensaiava escrever sobre a experiência dos dekasseguis, mesmo quando não tratava diretamente dessa vivência de imigração. Durante o meu processo, eu vi de perto muitas histórias de migrações que envolvem questões de trabalho em fábricas e encontros afetivos. Além disso, essas vivências dialogam com fragmentação familiar e relações bem específicas com nacionalidade, idioma e identidade. Apesar dessa ancestralidade, muitos lidaram com rejeição, xenofobia e choques culturais quando chegam ao Japão. Dessa forma, isso gera outros tipos de angústias e quebras na identidade.

Há muito silenciado, muito a ser contado e muitas possibilidades de criação artística. Por isso, escolher capturar as dimensões que envolvem a imigração me motivou a escrever uma obra sobre dekasseguis. A proposta era explorar o campo da ficção, sem narrar exatamente a minha própria história. Assim, eu quis fazer um drama familiar com personagens fictícios, que reverberassem experiências que fazem parte daquilo que é ser brasileiro no Japão.

Como o processo de escrita e pesquisa influenciou ou talvez até alterou sua própria percepção sobre a condição dekassegui e sua experiência de vida?

Foi um processo muito poderoso, emocionante e árduo em alguns momentos. Durante a criação do “Memórias de Água”, eu revisitei muitas recordações pessoais. Quando o “Revoada” foi aprovado pelo Itaú Cultural, eu voltei a cavoucar essas memórias, mas com um olhar diferente para experiências estéticas. Também fiz muita pesquisa bibliográfica e em revistas, consultando bibliotecas locais, artigos, livros teóricos sobre a experiência dekassegui.

A primeira fase dessa investigação incluiu também entrevistar brasileiros que moraram no Japão e retornaram ao Brasil. Já na segunda etapa de pesquisa, eu passei quase três meses na região de Gunma, reencontrando pessoas, lugares, fazendo anotações, captações de imagens e entrevistas. Assim, a ideia era dar plausibilidade para as situações que as personagens do livro iam viver, para que a ambientação tivesse sensorialidade.

Qual a importância de trazer o “dekasseguês” para a literatura e como você trabalhou essa fricção linguística em “Venha ver a revoada”?

Mais do que escrever um romance sobre dekasseguis, minha intenção era escrever um romance dekassegui. Queria que a narração e os diálogos traduzissem a sonoridade da fala dos brasileiros que vivem no Japão. A ideia era que quem é migrante pudesse reconhecer os códigos do seu dia a dia ali, da sua história e maneira de se expressar.

Além disso, eu queria que quem nunca teve a vivência dekassegui pudesse ter a sensação do que é ouvir ou viver essa variante do português. Para mim, ao escrever um livro, pensar na temática e na trama é tão importante quanto ter uma proposta de linguagem que atravesse essa escrita. Minha ideia foi refletir o que é ser estrangeiro, ser confrontado com outro idioma e se apropriar de pequenas parcelas dele. Portanto, me pareceu trazer uma nova camada de significado para o romance.

Como você vê a questão da “dupla identidade” (nipo-brasileira) e a fragmentação familiar refletidas nesses personagens?

Durante as conversas com pessoas que moraram no Japão e voltaram ou que ainda vivem no país, percebi a recorrência da questão de dupla identidade. Alguns tinham a sensação de serem estrangeiros em qualquer lugar. Aqui, eram tratados como “japoneses”, chamados de apelidos que as pessoas nem sempre sabem que são pejorativos, como “japa”, mesmo tendo nascido e crescido no Brasil.

Então, quando essas pessoas chegam ao Japão, são tratados como “gaijin”, ou seja, “forasteiros”. Alguns têm uma brasilidade mais aflorada, com uma relação de apego com a cultura brasileira mais forte do que tinham antes. Mas, quando voltam ao Brasil, se sentem deslocados outra vez. Há alguns até com bloqueios para se expressar em português. Mas ainda assim, são oficialmente brasileiros, têm pais que falam desse país que não conhecem. É como se vivessem em um entrelugar. Busquei trazer todos esses exemplos na construção de personagens variadas do livro reflexos dessas situações.

“Venha ver a revoada” trata de relações afetivas e existenciais no fluxo migratório. Qual desses aspectos foi o mais desafiador de explorar na narrativa?

Acho que um aspecto desafiador foi entender que mesmo que haja muito em comum nas experiências de dekasseguis, as famílias e indivíduos que migram são muito diferentes entre si, em sua visão de mundo, em sua relação com o Japão e o Brasil, em sua configuração familiar e tudo isso reflete em seus afetos, em sua existência.

Outro aspecto doloroso foi perceber como o trabalho em fábricas desgasta mesmo quem adora viver no Japão, como a falta de perspectiva com aposentadoria assusta tantos. Eu tentei lidar com tudo isso com certo distanciamento, até porque há situações que afetam minha família, mas esse distanciamento me trouxe bloqueio com a escrita. Eu precisei desfazer esse distanciamento, mesmo se tratando de ficção, para poder escrever.

E sobre o futuro: pretende escrever ou já está escrevendo algo novo?

Antes de começar a escrever “Venha ver a revoada”, eu estava trabalhando em um projeto de romance sobre uma cidade fictícia no interior de São Paulo. A ideia era falar sobre como as gerações de pessoas lidam com a origem violenta de suas cidades e de famílias. Essa é uma realidade comum em cidades do noroeste paulista, que surgem muitas vezes do genocídio de povos originários para a construção de estradas de ferro, da disputa por terras. O romance oscila entre a espiral de violência e a esperança.

Deixei esse trabalho de lado quando “Revoada” foi aprovado. No entanto, assim que entreguei o livro mais recente, as ideias voltaram a me assombrar. Até planejava fazer uma pequena pausa da escrita para ler mais recreativamente. Mas acho que essa outra trama está me chamando muito e não consigo fugir dela (risos).

Por fim, será que você pode mandar uma mensagem para os nossos leitores?

Vou deixar uma mensagem para pessoas leitoras que querem escrever e ainda não começaram. Existem histórias e sensações relacionadas a memórias que ninguém e nenhuma tecnologia vai contar como você, não com os ângulos e experiências estéticas que você vivenciou.

Se você tem vontade de escrever ficção, poesia, ensaio, roteiro, comece a experimentar com a escrita. Escreva para você até ter coragem de mostrar para outras pessoas. Mesmo se sua vontade é trabalhar com ficção científica ou fantasia, para outras mídias que não sejam livros, existem muitas vivências suas que criam um tecido único para sua escrita.

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