Caluã Eloi tem 30 anos, é não-binário e mora em Minas Gerais. É produtor cultural formado pelo IFRJ, no campo de Nilópolis. Também tem formação como especialista em linguagens artísticas, cultura e educação pelo IFRJ e mestre em artes, cultura e linguagem pela UFJF de Juiz de Fora. Eloi escreveu o livro “Bairro dos Corvos Elétricos”, que traz aspectos específicos de estudos aprofundados do autor durante a própria trajetória. Em entrevista ao Portal GeekPop News, Caluã fala sobre os posicionamentos e a vontade de trazer maior visibilidade LGBT através dos conhecimentos artísticos e históricos.
Antes de tudo, conta pra gente um pouco sobre você. Os detalhes que achar necessário compartilhar.
Gosto muito de gatos, contos de fadas, músicas soul. Sou a pessoa da arte, da cultura, como um todo. Escrevo, além de literatura, peças de teatro também, roteiro para cinema. Então trabalhar com escrita criativa sempre foi uma coisa que me acompanhou desde que eu aprendi a escrever.
É uma jornada antiga e apesar de eu já ter 30 anos, “O Bairro Dos Corvos Elétricos” é o primeiro neném, vamos dizer assim, o primeiro livro de literatura, de ficção que eu coloco no mundo. Eu tenho um outro livro que eu lancei antes, que na verdade foi resultado de uma pesquisa minha de pós-graduação. Ele chama “Não se Nasce Malévola, torna-se: A Representação da Mulher Nos Contos de Fadas”. Então é um livro sobre os arquétipos construídos nas personagens vilãs dos contos de fadas e como isso teve um impacto extremamente, vamos dizer assim, patriarcal ou machista dentro da nossa cultura.
Você falou brevemente que escreve desde muito novo. Gostaria que se aprofundasse um pouco mais sobre isso e falasse sobre essa sua vivência de como tudo se iniciou na parte de escrita criativa na sua vida.
Na verdade eu ainda não sei a resposta, eu acho que ainda estou nessa jornada de “por que eu comecei a escrever?” Porque eu me lembro de gostar de criar histórias, então antes de eu saber escrever, eu gostava de fazer cenas. Eu sempre gostei muito de filmes, eu fui a criança moradora de locadora, eu sou Milennials. Então eu gostava dessa coisa, desses mundos fantásticos e os contos de fadas sempre foram os meus preferidos, até hoje.
Uma das primeiras lembranças é que minha mãe não deixou eu ver de novo “A Bela Adormecida” porque na época era VHS, eu ficava rebobinando pra cena que a Malévola virava dragão. Eu achava aquilo incrível. Ficava na minha cabeça e eu queria construir histórias assim. Eu também fui uma criança que gostava muito de música, eu sou um eterno apaixonado por música.
Me lembro que quando eu tinha 6 anos, em 99, eu ganhei meu primeiro CD. Foi “O Guarda-Costas” da Whitney Houston. Eu não sabia quem era, não tinha dimensão do que era, mas eu lembro que eu via na capa escrito “Produção executiva Clive Davis”, que era o produtor dela. Quando me perguntavam o que eu queria ser quando crescer, eu falava “eu quero ser o Clive Davis”, eu quero de alguma forma estar envolvido nesse processo maravilhoso que é o mundo da música, o mundo das artes. Então a música sempre foi uma grande inspiração e também uma porta de criação de outros mundos, porque eu costumo brincar hoje que eu faço umas viagens alucinógenas só com música, sem precisar de nenhuma substância. A trilha sonora antecede a história.
Agora falando sobre o seu livro “Bairro dos Corvos Elétricos”. Como foi o seu processo de criação? Suas referências, inspirações e o que as pessoas vão poder encontrar ao se depararem com essa leitura?
O “Bairro dos Corvos Elétricos” é uma fantasia, uma aventura fantástica em que uma criança sai do nosso mundo em busca de um mundo perfeito. Nesse caminho ela acaba chegando nesse bairro, esse lugar totalmente diferente, controverso e ela precisa sair dali para chegar ao destino dela.
No “Bairro Dos Corvos Elétricos” eu começo o processo de escrita dele durante essa pós-graduação que gerou esse meu livro sobre contos de fadas, e uma das associações que eu faço nessa obra é uma análise de como as personagens, as vilãs especificamente dos contos de fadas, são embasadas em deusas pagãs, que foram demonizadas durante a expansão do cristianismo. Então a gente vai ter muitas relações de deusas matriarcais, de mitologias celtas, gregas, egípcias que foram sendo demonizadas nas figuras das vilãs, que vão pegar, por exemplo, elementos como o próprio gato, a lua, os corvos, algumas aves. Alguns símbolos de proteção da mulher nas religiões pagãs viram símbolos negativos, de maldade ou de demonização.
Então é uma história que tem muito misticismo, que vai trazer, especialmente, as as divindades matriarcais, os totens, as simbologias, de religiões matriarcais cuja a mulher está no centro. Vai ter muito dessa presença, mas claro, isso não é um dado
explícito, então você tem que ter uma sensibilidade de entender o porquê aquele símbolo está ali. Mas se você não tem esse conhecimento, você consegue perceber o que está sendo dito, que existe um elemento ali de ancestralidade muito forte relacionado à potências femininas, porque basicamente é uma história em que as mulheres e as pessoas trans, especificamente, são o coração das possíveis transformações que podem acontecer nesse mundo.
Apesar de se passar em um outro mundo, as pessoas que chegaram nesse mundo na história, elas estão vindo do nosso mundo cheio de marcas e traumas. Então a gente vai falar sobre abuso sexual, sobre intolerância religiosa, sobre uma série de coisas, que apesar de você estar em um mundo completamente novo, você sai do que te magoou, te machucou, mas as cicatrizes vão com você. Então ainda tem um pouco dessa parte mais crítica.
O seu trabalho tem bastante referências LGBTQI+. Quais são os seus princípios em querer trazer essa representatividade nas obras? O que você deseja que as pessoas sintam quando se depararem com esse conteúdo dentro das suas narrativas?
Eu quero que as pessoas, especialmente as pessoas LGBT, as mulheres, as pessoas que foram, de alguma forma, vítimas do nosso mundo, vamos dizer assim, (que) elas sintam um pouquinho de um sentimento de que você não está sozinho no mundo. E é um sentimento que é muito forte quando você não tem representatividade nenhuma ou pouca.
Então assim, “eu quero ver um filme, eu quero ler um livro, eu quero ver uma série sobre romance, mas não queria um romance hétero cis, eu queria alguém parecido comigo”, e você não encontra ou quando encontra vai falar sobre a dificuldade de aceitação da família.
Nesse livro, as pessoas LGBT elas simplesmente estão ali. Não é uma questão que estão discutindo: “será que ser lésbica é correto ou errado? será que minha família vai me aceitar ou não?”. Ela é lésbisca, ela tem o sentimento, ela tem a vivência, o amor e ela está ali vivendo a personagem que ela tem que viver. Isso não é uma questão. E as pessoas trans, a mesma coisa.
Então essa representatividade que naturaliza essas existências nos espaços, que eu particularmente, como uma pessoa que consome muita coisa de arte e cultura, sinto muita falta de simplesmente ter o personagem LGBT ali. Não é a questão, não é o problema da história ele ser LGBT, ele simplesmente é LGBT. Ou a pessoa que é negra na história, que tem o cabelo crespo, cabelo afro, que é de uma religião de matriz africana e esse não é o problema, esse não é o ponto de atenção da história.
Isso é apenas um fato secundário que faz parte da história, que faz parte de quem aquele personagem é. Então, eu não vou dizer que é um livro que vai te dar esperança porque não é gente, pelo amor de Deus, não faça acreditando que vai ler o “Bairro dos Corvos Elétricos” e “nossa, pessoas LGBT estão lá sendo empoderadas”. Não, gente. É um mundo bem cruel.
O que eu estou falando é que o fato de elas serem LGBT não é a questão do sofrimento, não é o objeto do sofrimento e isso por si só já traz um alívio muito grande porque às vezes a gente não quer esse gatilho.
Eu quero ler um livro para me entreter, para refletir, para criticar, para me distrair, por prazer. Eu não quero um livro que vai me lembrar do gatilho de quando a minha família não me aceitou. Às vezes você só quer ter uma representatividade, um personagem LGBT ali.
A gente sabe que isso existe, mas às vezes a gente só quer o LGBT herói, a gente só quer naturalizar. A Shonda Rhimes, criadora de Grey ‘s Anatomy fala muito sobre isso, de naturalizar presenças. Porque, olha aí, pessoas LGBT existem. Não adianta ficar sumindo com elas, como se não existissem.
Assim como durante muitos anos a TV, a propaganda sumia com as pessoas negras, que nunca apareciam nos comerciais, ou quando aparecia era só empregada e escravas. Somos mais de 50% da população, a gente existe, a gente precisa ter essa representatividade, essa existência validada.
Por conta do seu posicionamento, você é muito atacado? Como as pessoas recebem tudo isso?
m relação a esse livro, eu só tive uma crítica. Foi um leitor beta na verdade. Mas foi uma crítica que gerou um debate bem interessante porque a pessoa leu o livro e falou assim pra mim: “você é negro e você é racista”. Eu falei: “que isso? como assim?”, e ela falou “porque você não colocou nenhum personagem negro”. Aí eu: “mas onde é que está escrito que eles são brancos?”.
E a gente começou a refletir, que em nenhum momento eu faço descrição da cor da pele de ninguém. Então a gente entrou no debate sobre como o nosso imaginário é pautado nos padrões históricos da branquitude, da hétero-cis-normatividade.
Se eu te falar que tem um casal andando de mãos dadas, o que você vai imaginar? Vai imaginar um homem e uma mulher andando de mãos dadas. Mas um casal não necessariamente é um homem e uma mulher, pode ser dois homens, pode ser duas mulheres, pode ser pessoas trans não-binárias. Então o seu imaginário está te dando indícios de que a sua mente já foi padronizada dentro da sociedade machista, racista, LGBTfóbicas. Foi a única crítica que eu recebi sobre esse livro especificamente.
Mas eu ainda não tive a experiência de receber hater, crítica, ódio na internet. A primeira vez que isso quase aconteceu, porque eu tenho um canal no YouTube também, que chegou um comentário um pouco mais ofensivo e a primeira ação que eu tomei foi desativar os comentários. Por um lado eu sou o tipo de pessoa que gosta de ter o diálogo, de ter o debate, que as pessoas possam conversar, eu acho importante. Mas eu também sou do posicionamento, e é uma coisa que a Débora Baldin, que era do Canal das Bee, falava que “saúde mental tem que ser eixo estratégico da militância”. E eu não sei se eu estaria preparado para lidar com tanto ódio.
Esse ano nós perdemos o Popó Vaz, justamente por uma onda de ódio que foi disseminada na internet. Um homem trans, militante, que já era uma pessoa pública, que já estava lidando com esse tipo de situação, mas a onda de hate foi tão forte que ele não conseguiu aguentar.
Então eu ainda não tive essa experiência e eu espero não ter, porque eu tento priorizar o máximo possível a minha saúde mental. Então, quando eu estou forte o suficiente, vamos ter um diálogo. Eu prefiro, inclusive, fazer um bate-papo, uma roda de conversa, do que ficar batendo boca com alguém na internet, que a pessoa está ali mascarada pelo anonimato, destilando ódio que vai prejudicar a minha saúde mental, me deixar mal, triste e não é meu objetivo.
O meu objetivo é trazer debates que sejam saudáveis, mesmo que sejam pontos de vista diferentes.
Você tem planos para projetos futuros? O que está por vir que você pode compartilhar com a gente?
Com certeza! O “Bairro dos Corvos Elétricos” é um livro, eu não vou dizer que é saga, mas também não vou dizer que não é, porque ele se resolve sozinho. Então o Bairro dos Corvos Elétricos, tem começo, meio e fim, ele se fecha. Mas eu deixo algumas pontas que podem me permitir criar outras histórias dentro desse mesmo universo. Então existem planos de ter continuação do “Bairro do Corvos Elétricos”, está em processo e vamos ver o que vai dar!
O que você diria para alguém que quer começar a escrever, mas que ainda não encontrou uma motivação para dar o primeiro passo?
Escreva. É isso! Quando eu estava crescendo, falavam que para você escrever bem, você tinha que ler muito. Eu concordo e discordo dessa afirmação. Quando você lê bastante, porque às vezes você quer escrever e não acha que você é um grande leitor e isso acaba desmotivando, porque você pensa “eu não li os grandes autores da literatura nacional, como é que eu vou ser escritor?”
Realmente, quando você lê mais, você tem um repertório maior, um vocabulário melhor. Mas a prática leva a perfeição. Então assim, você quer escrever, você tem que escrever. Escreve poema, crônica, seja o que for, vai escrevendo. E a leitura de outras obras, outras coisas vai enriquecendo o seu imaginário, o próprio vocabulário.
Eu acho que a gente precisa acabar com esse tabu, esse mito, que você precisa ter lido todos os grandes nomes da Academia Brasileira de Letras, todos os Russos. Não. Você tem que ler o que você gosta de ler. Gosta de ler fanfic? Querido, vai ser feliz! Tem fanficqueiras maravilhosas aqui na internet, estão arrasando e dão de dez a zero em grandes autores. Você tem que ler o que gosta, escrever o que gosta e praticar.
Quando você não se sente bem em outras áreas da sua vida, a forma que você pode colocar isso pra fora é através da escrita, e não necessariamente precisa escrever grandes textos, grandes crônicas, divulgar pra todo mundo. Se você não quer divulgar, guarda, põe naquele bloquinho de notas só pra você.
Você não precisa ser o grande intelectual, ter toda a literatura nacional de cór na sua cabeça, precisa saber o que você quer.
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