Maurício Mendes nasceu em Fortaleza no Ceará, mas viveu parte da infância no interior do estado e no e Maranhão. Formou-se em Medicina pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), e agora, estreia como escritor com “O Homem não foi feito para ser Feliz”. Uma narrativa de ficção, que aborda o universo da medicina não apenas de uma forma reflexiva e sensível, mas também crítica. Maurício Mendes falou com exclusividade ao GeekPop News sobre sua trajetória e a inspiração para o livro. Confira a entrevista:

Você poderia se apresentar para os nossos leitores nas suas próprias palavras?

Sou alguém que escreve porque não sabe se comunicar de outro modo. Médico por formação, escritor por necessidade; não a necessidade de publicar, mas a de não sufocar. Talvez por isso minha literatura seja feita de pausas, elisões e desconfortos. Não acredito em personagens redimidos, nem em finais felizes. Acredito em pessoas que tentam, falham e continuam tentando.

Você é médico, como isso ajudou na sua formação como escritor?

A Medicina foi minha primeira escola de ficção. Não pela literatura médica, que é bem sem graça, mas pela encenação institucional que a cerca. O médico é treinado para parecer onisciente, mas vive cercado de dúvidas que não pode confessar. Aprende a escutar sintomas, mas ignora as narrativas por trás deles. A formação médica me ensinou a reconhecer o teatro da autoridade. Como escritor, uso essa vivência para expor o que o jaleco esconde: a falência dos afetos, o racismo estrutural, a misoginia travestida de cuidado.

Vamos falar sobre seu livro de estreia:

Seu protagonista é um homem cheio de falhas, descrito como misógino. Apesar disso, ele enfrenta o racismo e outras formas de preconceito. Por que esse personagem complexo?

Porque personagens planos não incomodam. E eu escrevo para incomodar. Germano é misógino, sim, mas não por acaso: ele é produto de uma masculinidade tóxica que o meio médico reforça, de uma sociedade que o ensinou a performar poder para sobreviver.

Ao mesmo tempo, ele é vítima do racismo estrutural, da exclusão simbólica, da solidão que acompanha o homem pardo que ascende socialmente. Germano é um corpo que não se encaixa: nem no lugar de opressor, nem no de oprimido.

Ele transita, escorrega, fere e é ferido. E essa ‘ambiguidade brutal’ é exatamente o que me fascina. Não escrevi para absolver Germano, mas para expô-lo. Porque só quando olhamos de frente para o que nos desagrada é que começamos a entender o que nos constitui.

Como profissional, você enxerga o racismo no meio médico?

O racismo no ambiente médico é uma realidade, uma estrutura enraizada. Está presente nos protocolos que desconsideram a dor do corpo negro. Nos diagnósticos que duvidam das queixas. Nas salas de espera onde o paciente pardo às vezes é o último a ser chamado.

Mas também se manifesta nos bastidores: nas residências médicas, onde o médico negro é tratado como uma mera cota. Nos corredores, onde o jaleco não é um escudo contra a humilhação. Como médico, experimentei isso na pele. Como escritor, faço minha denúncia. 

Meu romance não aborda apenas o racismo explícito, ele explora o racismo cotidiano, institucional, aquele que se camufla sob a aparência de norma. Germano, meu protagonista, vive essa realidade: ele ascende, mas nunca se sente parte. É essa tensão entre prestígio e exclusão que torna essa experiência insuportável e, por isso mesmo, essencial.

No livro, você fala sobre “mercantilização da saúde” e o “mito da felicidade”. O que podemos entender sobre esses temas?

A mercantilização da saúde é o processo pelo qual o cuidado vira produto, o paciente vira cliente e o médico, vendedor. A clínica onde Germano trabalha é o retrato da saúde como negócio: moderna, eficiente, cronometrada. Cada consulta tem tempo marcado, cada gesto de escuta é um desvio do protocolo. Ali, empatia é prejuízo.

A mercantilização da saúde não começa quando o paciente realiza o pagamento, mas quando o cuidado se transforma em métrica. Já o mito da felicidade é o pano de fundo dessa encenação. Vivemos numa sociedade que nos vende a ideia de que ser feliz é uma obrigação. Obviamente, se você não está feliz, é porque falhou.

Essa cobrança constante, esse marketing da alegria, é uma forma de controle. Germano tem tudo o que disseram que ele precisava para ser feliz — status, carreira, reconhecimento — e ainda assim está à deriva. Porque a felicidade, nesse contexto, não é um estado — é uma performance.

De onde veio a ideia para o título do livro?

O título nasceu de uma leitura tardia de Schopenhauer, que me atravessou como um diagnóstico. Para ele, a felicidade não é um estado natural, mas uma ilusão momentânea entre dois sofrimentos: o da necessidade e o do tédio. Essa visão crua, sem anestesia, me pareceu bastante honesta.

“O homem não foi feito para ser feliz” não é apenas uma provocação. É também uma recusa à narrativa dominante. Meu romance desmonta a promessa de bem-estar que sustenta o imaginário social. Germano, o protagonista, é a encarnação dessa falência. Porque, como diria Schopenhauer, o querer é sofrimento, e o não querer é vazio. O título é isso: uma síntese da condição humana, sem maquiagem.

Você concorda com o título da sua obra?

Na minha opinião, o homem não foi feito nem para ser feliz, nem para nada. Essa é a provocação central do romance. A ideia de que fomos ‘feitos’ para algum propósito já carrega uma ilusão metafísica que me interessa desmontar. Schopenhauer dizia que somos marionetes do querer, condenados a desejar o que nos destrói.

Freud, seu discípulo enrustido, tentou organizar esse caos em estruturas psíquicas, mas, no fundo, sabia que o sujeito é uma ficção instável. E Nietzsche, o irmão desequilibrado, veio para implodir tudo: não há essência, não há finalidade, só vontade de potência e abismo.

O título ‘O homem não foi feito para ser feliz’ é apenas a primeira camada. A segunda, mais radical, é que talvez o homem não tenha sido feito. Ele apenas aconteceu. O romance não oferece consolo; oferece desconforto.

Germano é a encarnação disso: um corpo que tenta se encaixar num mundo que não foi feito para acolher ninguém. Ele acredita que a felicidade é uma ilusão leviana e não busca redenção. Busca sentido e falha. E talvez seja nessa falha que resida o que há de mais humano.

Este é o seu livro de estreia, que inclusive contou com lançamento na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Como está sendo essa rotina como escritor?

A rotina como escritor é paradoxal. De um lado, há o brilho da Flip, os convites, as resenhas, aquela interação saudável com os leitores e com os meus amigos escritores e colegas de editora, muitos dos quais eu só conhecia por meio dos grupos no WhatsApp.

De outro, há o silêncio da página em branco, a vontade de voltar para casa e continuar escrevendo. A saudade da minha biblioteca e do meu espaço de leitura. Eu diria que essa tensão de escrever um romance não termina com o lançamento. Ela se instala na rotina. É mais ou menos como se tornar pai. Tornar-se escritor não tem volta.

Quais são seus planos? Já está trabalhando em uma nova obra?  

Meus projetos imediatos giram em torno da promoção do meu romance de estreia e da expansão e consolidação do meu público leitor. Enquanto isso, estou imerso na criação de um segundo romance. No primeiro eu disse que o homem não foi feito para ser feliz, agora aprofundo a ideia de que ele também não foi feito para pertencer.

Você pode mandar uma mensagem para os nossos leitores? 

Não se exijam tanto. A felicidade é superestimada, mas a lucidez, nem sempre. Este livro não foi escrito para oferecer respostas prontas, Mas para abrir espaço para perguntas sinceras. Se alguma coisa nele te tocou, te fez pensar ou simplesmente te acompanhou por algumas horas, já valeu a pena. Que a leitura tenha sido como uma conversa entre pessoas imperfeitas. Obrigado por me permitir esse encontro.