Por que as adaptações de livros para filmes desagradam os leitores
Quando um livro ganha sua versão cinematográfica, uma expectativa silenciosa paira no ar: será que o filme vai honrar a obra original? Para leitores, a relação com a literatura é, afinal, íntima, moldada pela imaginação, pela voz interna dos personagens e pela construção lenta de universos.
Já o cinema opera sob outras regras: tempo, orçamento, ritmo visual e linguagem. Logo, nem sempre o que funciona no papel encontra espaço na tela. Resultado: por mais fiel que uma adaptação tente ser, dificilmente agradará a todos.
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Adaptações que deram errado
O trailer da nova versão de “O Morro dos Ventos Uivantes” já causou desconforto entre fãs de Emily Brontë. A estética contemporânea aplicada ao romance gótico, protagonizado por Jacob Elordi e Margot Robbie, parece priorizar visual e elenco em detrimento da densidade emocional da obra. Um dos pontos mais polêmicos é a escalação de Elordi para o papel de Heathcliff, um personagem canonicamente racializado, cuja condição de “outsider” é central ao livro.

“Fiquei muito animada quando fiquei sabendo da adaptação. O livro é muito bom, mas a escolha do ator para interpretar o Heathcliff me desanimou. Não vejo como colocar um ator branco nesse papel, por mais famoso que seja”, afirma Joana Garcia Cid, psicóloga e grande leitora.
Outro exemplo de releitura equivocada é “Persuasão”, de Jane Austen, adaptado pela Netflix com Dakota Johnson no papel principal de Anne Elliot. A produção modernizou diálogos e apostou na quebra da quarta parede, retirando a sutileza e maturidade que definem o romance original. Assim, nas redes sociais, leitores classificaram o filme como uma atualização forçada.
A decepção com “Percy Jackson”
Ao falar de adaptações errôneas, é impossível não se lembrar dos filmes de “Percy Jackson”. Mudanças na idade dos protagonistas, no desenvolvimento das tramas e no tom narrativo transformaram o espírito mitológico e divertido da série de livros em um resultado completamente diferente para as telonas.
As adaptações dos dois primeiros livros da saga, “O Ladrão de Raios” e “O Mar de Monstros”, foram lançadas no começo dos anos 2010. O autor da saga literária, Rick Riordan, nem chegou a assistir o primeiro filme. Ele ficou tão decepcionado com o roteiro que disse “é como ver o seu trabalho ser jogado em um moedor de carne”. O sentimento é partilhado pelos fãs da saga, como Ana Loredo, que cresceu lendo os livros: “eu li toda saga antes de assistir o primeiro filme, que eu esperava que fosse tão bom quanto o livro. Infelizmente, não foi isso que aconteceu. Eles literalmente mudaram toda história, não tem nada de semelhante entre o livro e o filme.”
Ela segue: “O lado bom é que agora temos a adaptação em série de televisão, que é bem fiel ao livro e só o trailer da segunda temporada já é melhor do que o segundo filme”, completa rindo.
Então, é evidente que todos esses casos tem algo em comum: a perda de identidade da obra literária. Para quem se apaixona pelo universo e personagens criados nas páginas, fica difícil torcer por suas descaracterizações nas telonas.
Por outro lado: as adaptações que deram certo
Existem, porém, produções celebradas justamente por compreenderem o que torna seus livros especiais. Saber adaptar clássicos exige respeitar o contexto da obra, manter o tom original e, ainda assim, encontrar uma linguagem própria para o cinema, algo que nem sempre é simples.
“Adoráveis Mulheres”, de Greta Gerwig, reorganiza a cronologia, mas preserva temas como independência feminina e afeto familiar. A adaptação foi tão bem executada que rendeu à diretora uma indicação ao Oscar de Melhor Direção. Já o aguardado “Frankenstein”, de Guillermo del Toro, abraça o horror gótico e o drama existencial de Mary Shelley. Enquanto isso, “Orgulho e Preconceito”, dirigido por Joe Wright, entrega o romance às telonas com fidelidade ao tom de Austen, equilibrando romance, ironia e crítica social.
Para muitos leitores, o que conta em uma boa adaptação é o respeito ao núcleo emocional da obra. “‘Gabriela, Cravo e Canela’ teve um roteiro muito bem-adaptado, conseguiu pegar a essência dos personagens e reproduzir nas telas. A escolha do elenco traduziu exatamente as características do livro, com toda a sensualidade da atriz Sônia Braga. Dessa forma, acredito que a fidelidade ao enredo é o que faz a adaptação ser boa”, diz Fátima Regina, assistente social e fã de literatura brasileira.
Acertos na fantasia
Quando o assunto é fantasia, um dos gêneros mais complexos de transportar para o audiovisual, o desafio aumenta. “Harry Potter” conquistou gerações ao manter vivo o espírito dos livros, mesmo com cortes inevitáveis. A saga “Jogos Vorazes” preservou sua crítica política e a complexidade psicológica de Katniss.
O mesmo vale para “O Senhor dos Anéis”. A trilogia não tentou condensar a história em um único filme e manteve caracterizações próximas do texto original. “Apesar de ser uma releitura, para ser boa, uma adaptação deve honrar o material de origem, respeitar o tom e o ritmo da obra original”, assim avalia Luiz Augusto de Souza, mestre em Letras pela UEL.

Ainda assim, algumas narrativas são difíceis de transportar. “Livros muito centrados na interiorização do narrador não funcionam no cinema. A linguagem cinematográfica exige movimento”, explica.
Por que é tão difícil agradar?
Para Conrado Accorsi, formado em Cinema pela ESPM, a resposta está na natureza das linguagens. “Em um romance literário, você pode passar parágrafos descrevendo um cenário ou diálogos internos. A página permite tudo, a limitação é a imaginação. Já o cinema funciona como indústria: orçamento, duração e recepção do público influenciam decisões que nem imaginamos.”
Uma adaptação bem-sucedida precisa honrar o material de origem e, ao mesmo tempo, aceitar que cinema não é literatura. São modos diferentes de contar histórias.
No fim, adaptações desagradam porque cada leitor tem seu próprio filme interno. Quando a versão das telas não corresponde àquela construída na imaginação, a frustração é inevitável. Talvez esteja aí o fascínio: a página sempre será um lugar onde tudo cabe, inclusive expectativas impossíveis de colocar em um único plano-sequência.
Crédito imagem de capa: Montagem feita por Mário Guedes no Canva
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