Atenção: a matéria a seguir contém descrição de abuso sexual, automutilação e violência. Se você for sensível a esse tipo de conteúdo, não siga com a leitura ou leia com cautela.

A obra “10 minutos e 38 segundos neste mundo estranho”, da escritora turca Elif Shafak, chegou ao Brasil em 2021 pela HarperCollins. Dessa forma, o livro possui 33 capítulos, narrados em terceira pessoa e divididos em três partes: “A mente”, “O Corpo” e “A alma”. 

A história gira em torno de Leila Tequila, uma prostituta que foi assassinada. Assim, nos 10 minutos e 38 segundos que seu cérebro continua ativo após sua morte, a personagem relembra sua vida. Desde o seu nascimento até seus últimos momentos. 

10 minutos e 38 segundos neste mundo estranho

Leila nasceu e cresceu em Van, uma província localizada na Turquia. De família muçulmana, ela já veio ao mundo envolta em uma cultura onde a figura feminina tem diversas obrigações, com a família e a sociedade. Seu pai tinha duas esposas, o que moldou sua criação. Além disso, após o nascimento de seu irmão caçula, que tem Síndrome de Down, o homem se tornou ainda mais religioso. 

Desde quando tinha seis anos, Leila era abusada sexualmente pelo tio. Esse fato foi determinante em sua vida, que cresceu totalmente infeliz, pelo trauma e toda a pressão que sofria em casa, o que a levou até mesmo a automutilação. Além disso, a menina não podia ser ela mesma, experimentar o mundo e viver como uma adolescente normal. Tudo isso foi determinante para o seu futuro e ela acabou se tornando uma prostituta em Istambul. 

Entretanto, apesar de todo o sofrimento que passou em sua vida, Leila sempre pode contar com seus amigos: Sinan Sabotagem, que conheceu ainda na infância em Van, Nalan Nostalgia, Jameelah, Zaynab122 e Humeyra Hollywood, que conheceu após chegar na grande cidade. Dessa forma, os cinco se tornam presença constante em seus dias e, mais do que isso, a família que ela nunca teve.

Ambientação

Mesmo sendo ficção, o livro traz alguns fatos históricos que realmente aconteceram e lugares que existem em Istambul. Assim, nas palavras da autora, escritas nas notas ao leitor, “muitas coisas neste livro são verdade e tudo é ficção”.

Uma das cenas narra o chamado “1º de maio sangrento” ou “Domingo Sangrento de 1977”, quando, em uma manifestação na Praça Taksim, em Istambul, 34 pessoas foram assassinadas e 120 ficaram feridas. Elif consegue trazer toda a dor e angústia que Leila sente nesse momento, enquanto o leitor conhece um momento histórico do país. A obra também cita o “Massacre de Mỹ Lai”, de 1968, em que soldados do exército dos Estados Unidos mataram mais de 400 civis no Vietnã. 

Outro fato interessante é que a personagem trabalha na chamada “Rua dos Bordéis”, que realmente existe. Além disso, o “Cemitério dos Solitários”, onde sepultam Leila, também é real e a autora se inspirou em matérias de jornais para descrever outros personagens enterrados lá.

Impressões sobre o livro

A autora possui uma escrita muito envolvente, sendo assim, em pouco tempo o leitor se vê apegado à Leila e comovido por sua dolorosa história. Durante todo o livro, Elif aborda diversos temas difíceis, como abuso infantil e assassinato, de maneira tão sensível que você acaba sentindo todas as emoções com os personagens. 

Além disso, mesmo com a narração em terceira pessoa, é possível se conectar com tudo o que Leila e seus amigos passam, o que é muito interessante porque não se torna algo distante e impessoal. Pelo contrário, ao passar cada uma das páginas, você acaba se sentindo como o sexto amigo da personagem. Essa conexão foi tão forte que, mesmo tecnicamente estando morta desde o início do livro, eu me peguei com saudades da Leila.

Entretanto, após esse momento, a obra foca em seus amigos, o que foi muito positivo porque o leitor consegue conhecer mais sobre eles. O único ponto que me incomodou foi que, no fim, a autora também trouxe alguns outros personagens. Com isso, o foco se distanciou da trama principal, o que se tornou um pouco cansativo. Além disso, o último capítulo foca apenas em uma das amigas de Leila, então o leitor sente falta de ver como os outros se sentiram e lidaram com aquele momento.

A história também apresenta diversos costumes e tradições turcas. Desse modo, conhecemos mais sobre a cultura do país, algumas crenças, comidas, etc. A autora consegue te levar em uma viagem para a Turquia e, mesmo que em alguns momentos passe uma visão negativa, é muito interessante conhecer mais sobre o lugar.

O desenvolvimento da Leila é um ponto muito positivo na história. Conhecemos ela ainda bebê, em seu nascimento, passamos pela infância e acompanhamos momentos importantes de sua vida até a sua morte. Sendo assim, é possível ver como ela, mesmo com todos os traumas, conseguiu seguir sua vida e criar a família que nunca teve. 

“Nalan Nostalgia acreditava que havia dois tipos de família neste mundo: os parentes eram a família de sangue, e os amigos, a família de água. (…) Portanto, era possível que seus amigos tivessem um lugar especial no seu coração e ocupassem mais espaço que todos os seus parentes juntos. Mas aqueles que nunca foram rejeitados pelos próprios parentes nunca entenderiam isso, nem em um milhão de anos. Nunca saberiam que, às vezes, a água vale mais do que o sangue”.

10 minutos e 38 segundos neste mundo estranho, págs. 245 e 246.

Sobre a autora

Imagem da autora Elif Safak
Créditos: Reprodução/Instagram (@shafakelif)

Elif Shafak é uma escritora turco-britânica, possui dezoito livros publicados e traduzidos para 54 idiomas. Doutora em ciência política, ela já lecionou em várias universidades na Turquia, nos Estados Unidos e no Reino Unido, incluindo a St Anne’s College e a Oxford University. Além de julgar vários prêmios literários, Elif presidiu o prêmio Wellcome e atualmente faz parte do júri do prêmio PEN Nabokov. Além de ter sido finalista do Booker Prize e do RSL Ondaatje Prize em 2019, “10 minutos 38 segundos nesse mundo estranho” foi eleito o livro do ano pela Blackwell.

Imagem capa: Adaptação | HarperCollins