A comovente graphic novel autobiográfica de Fabien Toulmé, Não Era Você Que Eu Esperava (Ce n’est pas toi que j’attendais), publicada no Brasil pela Editora Nemo em 2017, é uma estreia marcante do engenheiro e quadrinista francês – e pernambucano. A obra narra a reação do autor ao diagnóstico de Síndrome de Down (Trissomia 21) de sua filha Julia. Além disso, expõe os sentimentos contraditórios que vão desde o choque e a rejeição inicial até a construção de um amor incondicional. O título funciona como um espelho das expectativas frustradas e da imprevisibilidade da vida. Dessa forma, dialoga com um dilema universal: a idealização parental versus a realidade inesperada. Toulmé não suaviza suas emoções iniciais. Pelo contrário, ele as desnuda, revelando preconceitos e fragilidades, o que torna a narrativa ainda mais potente e humana.

A vida e seus indesperados

Ao tratar de sua transformação pessoal, o autor aborda, de forma sensível, temas como aceitação, empatia e desconstrução de expectativas. É justamente nessa sinceridade que reside a força narrativa da obra. Isso se manifesta na combinação harmônica entre palavra, imagem e sentimento. Toulmé adota uma escrita simples e direta, mas carregada de emoção, o que torna a leitura acessível e íntima. Essa simplicidade textual contrasta e, ao mesmo tempo, se complementa com as ilustrações, que não funcionam apenas como complemento, mas como parte integrante da narrativa.

O traço de Toulmé intensifica as sensações transmitidas pelo texto. Juntos, eles criam um fluxo de leitura agradável, capaz de alternar entre momentos tensos, delicados e até bem-humorados. A honestidade do autor em expor suas vulnerabilidades é amplificada por essa interação entre texto e imagem. Como resultado, a experiência do leitor se transforma em algo quase confessional.

Reprodução: imagem de arquivo pessoal

As cores de Toulmé contam histórias

O estilo de traço de Fabien Toulmé é propositalmente simples e direto. A paleta cromática muda conforme a ambientação e o estado emocional dos personagens, reforçando atmosferas e sentimentos. No Brasil, predominam tons de amarelo vivo, evocando calor e vitalidade. Por outro lado, na França, os tons variam entre verde e cinza arroxeado, sugerindo introspecção e incerteza. Nos capítulos mais tristes, as cores se tornam sombrias, espelhando a dor e a dificuldade do protagonista. Essa variação cromática não é apenas estética. Ela guia o leitor emocionalmente, tornando cada capítulo uma experiência visual distinta e significativa.

Reprodução: imagem de arquivo pessoal

Longe de buscar realismo excessivo, o autor privilegia a expressividade e a proximidade emocional. Um exemplo disso está nos detalhes peculiares, como o “nariz triplo” de sua esposa e de Julia, que se tornam uma marca afetiva da narrativa. Toulmé, que se formou em engenharia, encontrou nos quadrinhos uma forma de explorar temas profundos com sinceridade e clareza. Por isso, sua obra mistura diário pessoal com reportagem gráfica. A diagramação, elogiada pela crítica, organiza os quadros de maneira intuitiva e confortável, garantindo fluidez e ritmo à leitura. Com essa obra, Fabien Toulmé confirma seu talento como autor capaz de transformar experiências íntimas em reflexões universais.

Personagens na obra de Fabien Toulmé

A construção dos personagens é outro ponto forte da obra. Destaca-se, principalmente, a exposição crua dos sentimentos de Toulmé, que relata sem filtros seu choque, preconceito e posterior transformação. Entretanto, há críticas à pouca exploração da voz da mãe, Patrícia, cuja perspectiva aparece em segundo plano. Isso decorre do caráter autobiográfico e da narrativa em primeira pessoa. Ainda assim, a obra oferece uma visão sincera e complexa da experiência familiar diante do inesperado.

Mais do que um relato pessoal, Não Era Você Que Eu Esperava é um convite à reflexão sobre preconceitos, expectativas sociais e o verdadeiro significado do amor. Ao compartilhar suas inseguranças e seu caminho até a aceitação, Toulmé nos conduz a um exercício de empatia raro e profundo.

A obra emociona não apenas pelo tema delicado, mas pela franqueza com que o autor se expõe. Com isso, transforma sua vivência em um testemunho universal sobre a imperfeição da vida e a beleza que dela brota. Em sua conclusão, a graphic novel deixa uma marca duradoura. Ela une fluidez narrativa, arte expressiva e uso inteligente das cores, criando uma experiência estética e emocional poderosa. É uma leitura essencial para quem aprecia histórias autobiográficas, quadrinhos com relevância social e obras que exploram as nuances da emoção humana.

Bento, meu filho, faz 1 ano no mês que vem. Tem sido uma aventura intensa e transformadora. Mas talvez eu fale mais sobre isso em outro texto e nesta mesma coluna – quem sabe no próximo?

Reprodução: imagem de arquivo pessoal

E depois da leitura, ecoa uma pergunta universal: o que esperamos da vida e como reagimos quando ela nos presenteia com o inesperado?