Alerta: O texto a seguir é uma resenha do livro “A face mais doce do Azar” que contem descrições de violência sexual, depressão e suicídio. Se você se incomoda ou é sensível a esse tipo de conteúdo, não prossiga com a leitura ou siga com cautela.

Em “A Face mais doce do Azar” Vera Saad faz um relato real e comovente sobre a ascensão e crise financeira de uma família antes e depois do governo do ex-presidente Fernando Collor de Mello. A narrativa se desenrola pelo olhar de Dubianca ou Bianca, que vive os conflitos da adolescência em meio à estabilidade e depois decadência financeira de sua família.

O contexto histórico da obra

Uma história recente no imaginário dos brasileiros, o governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992) foi marcado por uma série de escândalos de corrupção que culminaram em seu impeachment. 

O principal pivô desses escândalos foi Paulo César Farias, conhecido como PC Farias, que era o tesoureiro da campanha de Collor e se tornou uma figura central nas denúncias. Além disso, embora não seja um escândalo de corrupção no mesmo sentido, o confisco de depósitos bancários e cadernetas de poupança em 1990 gerou enorme insatisfação popular, assim como desconfiança no governo. 

O confisco foi parte de uma medida para controlar a hiperinflação, mas afetou diretamente a vida dos cidadãos que não puderam acessar suas economias. Essa ação governamental foi amplamente criticada e vista como uma violação da segurança financeira dos cidadãos.

Enredo

Dubianca é uma jovem adolescente que vive com os pais na casa da avó. No entanto, a relação familiar não é fácil e, após receber uma proposta para abrir um negócio do irmão Arthur, Antônio, o pai de Bianca, decide se mudar com a esposa Lisa e a filha para a casa de Arthur.  

Apesar do negócio ser uma sociedade, fica nítido o incômodo da família em viver no porão da casa de Arthur, apesar de ele e sua esposa Tânia garantirem que a casa também é deles. A partir daí, acompanhamos o sonho dos pais de Bianca de conseguir juntar dinheiro o suficiente para comprar a própria casa. 

Bianca se torna próxima da prima Maíra, uma menina de sua idade, mas com ideias e comportamento bem diferentes dela. Bianca também passa a observar os vizinhos, o misterioso Alex Dipp e seu filho adotivo Zé Mauro, com quem passa a ter aulas de violão, e por quem a jovem se interessa. 

Os conflitos de Bianca e Maíra são uma trama paralela no livro. Atitudes de Maíra colocam a jovem em risco, assim como seu posterior envolvimento com Zé Mauro, afastam as meninas uma vez unidas.  No entanto, é a crise financeira que é o principal fio condutor da narrativa, e o que acaba por definir os rumos da história.

Governo Collor dentro das casas brasileiras

A eleição de Fernando Collor de Mello em 1989 causa uma divisão na família de Bianca. Enquanto a mãe Lisa e o pai Antônio ficam encantados com a “renovação política”, Arthur não acredita na história do “caçador de marajás”. 

Quando ele vence a eleição, um tempo de esperança parece começar. No entanto, a crise econômica não melhora, e ainda por cima agrava-se.  Os problemas econômicos afetam diretamente o negócio dos irmãos Antônio e Arthur, que culpa Collor e sua equipe pela crise. 

Até que o estopim vem com o confisco das poupanças. A família se vê em uma situação difícil, com dívidas e sem poder movimentar o dinheiro. No entanto, o problema financeiro não afeta apenas o poder aquisitivo. 

A relação familiar fica abalada. Uma vez bem vindos, Arthur e Tânia deixam cada vez mais claro que Antônio e sua família são hóspedes ali. E que devem ir embora. Bianca e Maíra se afastam cada vez mais, deixando claro que sempre foram cada uma por si, e por seus pais. 

É interessante observar que a relação entre Bianca e Maíra se revela cada vez mais parecida com a de Antônio e Arthur, um parentesco que não impede a rivalidade e o afastamento. 

A tragédia e o futuro

Desesperado pela falência, Antônio desaparece. Em meio a relatos de depressão e pessoas que tiram a própria vida, Bianca e Lisa partem em busca dele, mas procura parece sem nenhuma expectativa. Bianca vê então seus sonhos ruírem sem nenhum apoio. 

É então que Lisa se aproxima do vizinho Alex Dipp, o homem que tanto intriga Bianca. Inicialmente gentil e um bom amigo, a verdadeira índole de Alex Dipp aparece quando Bianca é violentada pelo padrasto. 

Sem coragem de contar para a mãe, Bianca conta tudo para sua avó. No entanto, não revela a identidade de seu abusador, uma vez que, para a menina, ninguém acreditaria que o admirável Alex Dipp fez algo de tão grave. Bianca vai viver com a avó, mas guardando para si o que realmente aconteceu.

A história termina em uma reflexão sobre como acreditar em um futuro melhor após tantos traumas, tragédias e violência. Como a jovem Dubianca poderá seguir em frente a partir de agora.

Impressões sobre o livro

Qual é a face mais doce do azar? É possível encontrar sentido após vários traumas deixarem marcas profundas? Vera Saad acerta em mostrar como a política, que às vezes parece tão distante, afeta diretamente a vida dos brasileiros. 

Hoje, mesmo mais de 30 anos após o governo Collor, a política continua imersa no nosso cotidiano. É preciso que a população entenda que as decisões políticas, em todas as esferas, nos afetam diretamente. 

Vivemos um momento complexo na política brasileira, e independente de lado ou ideologia, precisamos entender nosso papel nesse processo. 

A violência contra Bianca surpreende, apesar de a autora deixar pistas no decorrer do livro. Quantas meninas não vivem o mesmo dentro de suas casas? Quantas meninas não denunciam por medo de julgamento ou de serem desacreditadas, ou até mesmo de represálias? O trauma deixa marcas para sempre. Será possível superar esse tipo de violência? 

Essa cultura de culpabilização da vítima precisa ser superada, uma vez que, por mais que nossas leis sejam falhas, a denúncia é a principal forma de fazer com que esses criminosos paguem por seus crimes. 

Portanto, em “A Face mais doce do Azar”, Vera Saad realiza em poucas páginas um grande trabalho, ao mostrar como a política interfere na vida da população e ao descrever um fato tão triste, mas de forma tão direta e clara, para entendermos a perspectiva da vítima de violência, e atuarmos como cidadãos para combater essa realidade.