Nos dois primeiros episódios, “Ângela Diniz: Assassinada e Condenada” combina direção precisa, elenco afiado e trilha sonora meticulosa

A nova minissérie da HBO, “Ângela Diniz: Assassinada e Condenada“, dirigida por Andrucha Waddington, estreia com dois episódios que já deixam claro o fôlego dramático e político da produção. O projeto, protagonizado por Marjorie Estiano (Sob Pressão), não se limita a reconstituir o assassinato de Ângela Diniz em 1976; ele o transforma em um diagnóstico sobre a violência estrutural que molda, até hoje, o destino de tantas mulheres brasileiras.

O resultado é uma série que combina narrativa forte, visual caprichado e uma atuação central de altíssimo nível para revisitar um caso emblemático, e ainda muito atual. Já nos primeiros minutos, fica claro que a produção mistura elementos de drama, tribunal e reconstrução histórica sem medo de experimentar.

A estética dos anos 1970 aparece com personalidade, usando figurino, ambiente e clima da época como parte ativa da história. E, desde cedo, a série deixa evidente sua ideia central: antes de ser assassinada, Ângela já tinha sido condenada pela opinião pública. É dessa visão, dura, direta e incômoda, que parte toda a análise que vem a seguir.

Marjorie Estiano e Emílio Dantas em "Ângela Diniz: Assassinada e Condenada"
Marjorie Estiano e Emílio Dantas em “Ângela Diniz: Assassinada e Condenada”. Crédito: Divulgação/HBO

A força de Marjorie Estiano e a excelência de um elenco que sustenta a verdade

O grande destaque dos episódios iniciais é, sem surpresa, Marjorie Estiano. Ela atravessa a vida de Ângela com a segurança de quem entende cada nuance de uma mulher que nunca pôde se contar por inteiro. Marjorie entrega uma atuação emocionalmente precisa, firme nas camadas que moldaram a socialite, mas também vulnerável, contraditória e profundamente humana. A Ângela que ela recria não tenta ser mártir nem símbolo; ela é simplesmente uma mulher que decidiu viver livre. E, infelizmente, pagou caro por isso.

Ao longo dos episódios, a atriz constrói essa figura com gestos mínimos, silêncios que dizem mais do que diálogos e olhares que já parecem antecipar o desfecho trágico. Em uma cena marcante logo no primeiro episódio, apenas a presença dela em um ambiente hostil basta para mudar o ar. É o tipo de momento que resume a proposta da série: devolver protagonismo a quem foi calada pela imprensa, pelos tribunais e pelo moralismo da época.

Enquanto isso, o elenco coadjuvante sustenta a narrativa com consistência e propósito. Yara de Novaes, como Maria Diniz, dá vida a uma mãe que oscila entre o desespero silencioso e a força necessária para enfrentar uma tragédia anunciada; sua presença emocionalmente contida acrescenta gravidade a cada cena.

Joaquim Lopes, no papel de Tuca Mendes, recria o universo social que cercava Ângela, representando um amigo que enxerga, ainda que tardiamente, o tamanho da injustiça cometida contra ela, funcionando como ponte entre o público e a percepção distorcida da época.

Maria Volpe, como Mariana, entrega uma figura que mistura afeto, memória e testemunho; sua atuação ajuda a costurar o impacto da violência de forma íntima, revelando a mulher por trás do mito e humanizando ainda mais a trajetória de Ângela.

Ângela Diniz Assassinada e Condenada
Marjorie Estiano, Emilio Dantas e Maria Volpe na série | Crédito: HBO Max/Divulgação

A direção precisa de Waddington

A direção de Andrucha Waddington se destaca por fugir dos códigos tradicionais do true crime. Ele se afasta da estética de reconstituição policial e se aproxima de um drama psicológico e social de grande densidade. A violência não é tratada como espetáculo, mas como sintoma. Em vez de conduzir a trama para o choque, Waddington a conduz para o incômodo, e isso torna a série muito mais potente.

Os dois episódios avançam com fluidez, sempre alinhados ao ritmo emocional de Ângela. A fotografia usa tons quentes que se resfriam aos poucos, acompanhando a deterioração da liberdade da protagonista. É uma decisão estética que dialoga diretamente com a narrativa.

A trilha sonora também merece destaque. Em vez de apenas preencher o fundo das cenas, ela praticamente conduz os episódios. Cada música parece escolhida com lupa, como se cada batida precisasse traduzir um sentimento, uma mudança interna ou aquele momento em que a história vira de cabeça para baixo.

As canções das festas, que antes soavam livres e intensas, reaparecem mais sombrias, quase como lembranças distorcidas pelo tempo. Há um clima de melancolia, tensão e pressentimento em cada faixa. No fim, a trilha não só acompanha Ângela, ela funciona como uma espécie de espelho emocional da própria vida dela.

Crítica - série Ângela Diniz Assassinada e Condenada
Marjorie Estiano como Ângela Diniz | Crédito: Laura Campanella/HBO Max

Contexto, diálogo com o gênero e a leitura final dos episódios iniciais

Os dois primeiros capítulos deixam evidente que “Ângela Diniz: Assassinada e Condenada” se posiciona para além de uma narrativa de crime. É, antes, uma leitura crítica sobre a cultura da violência contra a mulher e sobre a forma como a sociedade, ontem e hoje, julga comportamentos femininos com severidade muito maior do que julga crimes cometidos contra elas.

Não por acaso, a minissérie resgata o absurdo jurídico da “legítima defesa da honra”, argumento que atravessou o caso e permaneceu, formalmente, na esfera legal até 2023. Ao dialogar com produções recentes do gênero feminicídio e reconstrução histórica, a série da HBO se destaca por sua postura ética e artística.

O foco nunca está no assassino ou na violência gráfica. O foco está em Ângela, como personagem, como símbolo e como mulher de carne e osso. A produção humaniza, contextualiza e denuncia, com rigor e sem didatismos excessivos. Os episódios, portanto, convencem tanto como drama quanto como documento histórico. E marcam o espectador pelo equilíbrio entre força estética, precisão narrativa e sensibilidade política.

Vale a pena assistir “Ângela Diniz: Assassinada e Condenada”?

Sim, e não apenas pelo peso histórico. A minissérie promete ser uma das produções nacionais mais relevantes dos últimos anos ao combinar um elenco preciso, uma protagonista em plena maturidade artística e uma direção que sabe onde quer levar o espectador.

A reconstrução de época é sofisticada, a trilha sonora é cirurgicamente pensada e a narrativa acerta ao colocar Ângela no centro da própria história. Ao final dos dois primeiros episódios, fica a sensação de que estamos diante de uma obra que não pretende apenas recontar um crime, mas questionar por que crimes como esse continuam a acontecer.

A série entrega denúncia, humanidade e uma reflexão necessária, que reverbera muito além da tela. E sim: vale, muito, a pena assistir.