O último episódio de Bem-Vindos a Derry fecha um ciclo muito interessante de uma das séries mais surpreendentes de 2025, especialmente dentro do gênero terror e suspense. Não é apenas um encerramento de temporada, é a confirmação de que a série sabia exatamente onde queria chegar, mesmo tropeçando no caminho.

Após um sétimo episódio profundo, complexo e surpreendente, ficou aquela ansiedade legítima de imaginar como Andy Muschietti conseguiria não só manter o nível, mas concluir essa primeira etapa da história. Havia muitas informações ainda em aberto, questões que orbitavam o Pennywise e que poderiam dialogar tanto com o livro quanto com os filmes. O oitavo episódio deixa claro que a escolha foi estratégica, priorizar a resolução dos conflitos criados ao longo da temporada, em vez de abrir novas frentes narrativas.

Entre esses conflitos está a tentativa do exército americano de remover os pilares que mantinham Pennywise preso em uma espécie de “gaiola”, além do fechamento de arcos secundários importantes. Um deles é o de Hank Grogan, acusado de assassinar crianças no primeiro episódio. Esse elemento nunca ganha a profundidade que parecia prometer e acaba funcionando mais como motor narrativo para a filha, Ronnie, do que como uma trama autônoma bem desenvolvida. Isso cria um pequeno furo estrutural, uma sensação de história desmantelada, ainda que o episódio entregue um desfecho funcional para esse arco.

O mesmo vale para a família Hanlon. Charlotte, Will e o pai, Leroy, formam um dos núcleos mais interessantes da série. Leroy, como membro do exército, vive uma encruzilhada moral potente, proteger o país ou salvar o próprio filho das engrenagens do sistema que ele mesmo ajuda a sustentar. Pela primeira vez, ele assume um protagonismo real, tentando resolver a situação e resgatar Will, que no episódio sete havia sido levado após encarar a visão da morte imposta por Pennywise. Até então, não sabíamos se o garoto estava vivo ou morto. Seus amigos, Lily, Ronnie e Marge, partem para o resgate sem hesitar, numa escolha que dialoga diretamente com a essência de It, essa coragem infantil que enfrenta o medo sem pedir permissão.

Muschietti organiza o episódio final a partir de três pilares muito claros. O primeiro é o uso de Dick Hallorann como ferramenta para localizar Pennywise. O segundo é a busca pela ajuda de Rose, tentando criar uma nova forma de aprisionar o palhaço. O terceiro são as crianças confrontando seus próprios medos para salvar quem amam. Esses três eixos sustentam um episódio com pouco mais de uma hora, que poderia soar curto diante da quantidade de acontecimentos, mas que funciona justamente porque a série vinha preparando esse terreno desde o início.

Derry como personagem e o crescimento da série

E é aqui que fica evidente como Bem-Vindos a Derry cresce ao longo da temporada. A série começa em um lugar mais contido, quase observacional, e vai ampliando sua ambição narrativa aos poucos. Existe, sim, um miolo problemático, especialmente nos episódios cinco e seis, que são mornos, às vezes desconectados da realidade emocional que a série havia construído. Em alguns momentos, parecem episódios que freiam o ritmo e dispersam o foco. No entanto, olhando o conjunto, essa escolha soa estratégica. Eles funcionam como um vale antes da subida. O sétimo e o oitavo episódios simplesmente catapultam a série para outro patamar, revelando um potencial muito mais agressivo e seguro no uso do terror e do horror.

Essa escalada narrativa ganha ainda mais força quando a série retoma um de seus conceitos mais interessantes, Derry como um organismo vivo. Desde os primeiros episódios, fica claro que Derry pulsa maldade. A cidade não é apenas cenário, ela é personagem. No episódio sete, isso se torna cristalino. As pessoas são cruéis, omissas, violentas, e essa perversidade cotidiana se constrói de forma quase banal. Surge então a pergunta inevitável, Derry é má porque Pennywise habita ali, ou Pennywise habita ali porque a cidade já era essencialmente má? A série não responde de forma direta, mas aponta algo ainda mais perturbador, essa maldade difusa, entranhada nas relações humanas, é o combustível que mantém o It ativo a cada 27 anos. O medo não nasce do nada, ele é alimentado por um ambiente social apodrecido.

Will segurando a adaga que aprisiona Pennywise
IT: Welcome to Derry – Foto: Brooke Palmer/HBO

Afeto, horror e legado

O episódio oito apresenta o contraponto dessa lógica. O desfecho evidencia como o amor, a amizade e a união conseguem enfraquecer esse combustível. Não se trata de eliminar o mal de forma ingênua, mas de reduzir sua força. Essa ideia nasce no próprio universo de It, criado por Stephen King, e volta a aparecer tanto no romance quanto nas adaptações para o cinema, especialmente na lógica do Clube dos Perdedores, que é o nome que as crianças dão ao próprio grupo, uma espécie de pacto afetivo contra o medo. Bem-Vindos a Derry entende esse coração da obra e o traduz para sua própria mitologia, mostrando que o terror prospera na solidão, enquanto a conexão humana o desmonta.

Ao comparar com Stranger Things, é importante lembrar que ambas compartilham um senso comum evidente. Não é segredo que a série dos irmãos Duffer funciona, em muitos aspectos, como uma homenagem ao universo de It, algo que já estava presente no livro muito antes de chegar à televisão. As semelhanças estão ali, na dinâmica entre crianças, amizade e ameaça sobrenatural. A diferença é que a série se distancia ao apostar com mais coragem no horror e no terror. O suspense, por outro lado, nem sempre é tratado com o mesmo cuidado, já que a série não faz grande questão de esconder seus mistérios por muito tempo.

Isso leva a uma crítica válida sobre a consistência narrativa. Em alguns momentos, a série exige atenção total do espectador. A temporalidade não é claramente definida, e isso pode gerar confusão. Nem sempre fica claro se determinados eventos aconteceram em um único dia, em uma semana ou ao longo de um período maior. Quem não acompanha com atenção pode se sentir deslocado, sem saber exatamente em que ponto do tempo está. A série não se preocupa em facilitar essa leitura, o que pode afastar parte do público, ainda que dialogue com uma proposta mais exigente.

Jovan Adepo e Chris Chalk – Foto: Brooke Palmer/HBO

Série entrega tudo o que não prometeu, e por isso surpreende

No balanço final, Bem-Vindos a Derry entrega uma temporada sólida. Há episódios bons, episódios excelentes e um que pouco acrescenta, mas o conjunto funciona. A série oferece terror, horror e sustos eficazes, além de algo ainda mais raro, a sensação constante de que nenhum protagonista está realmente a salvo. Até os últimos minutos, existe a crença real de que alguém pode morrer. Esse risco permanente é um dos maiores acertos da narrativa. Você se apega aos personagens, ou tenta não se apegar, justamente porque sabe que o diretor não tem pudor em sacrificar quem for necessário.

Para mim, como crítico de cinema há mais de dez anos, é uma das séries mais consistentes em relação ao seu propósito desde o primeiro episódio. A morte logo nos primeiros dez minutos já deixava claro que a obra não vinha para ocupar um lugar confortável, mas para romper com o padrão. Foi assim ao longo da temporada, às vezes tropeçando, sacrificando histórias que poderiam ser mais aprofundadas, mas sempre mantendo coerência interna. Com pelo menos mais duas temporadas confirmadas, ainda há tempo para desenvolver essas narrativas.

Dentro do núcleo apresentado, o desfecho funciona. Há cenas emocionantes, a volta de Rich para ajudar os amigos, conexões diretas com outras obras de Stephen King e com os filmes que virão. Existe uma cena específica, belíssima, que se conecta diretamente a um personagem conhecido do público, mas que merece ser descoberta sem spoilers. Aos poucos, a série constrói um legado, apresentando personagens que crescerão, se cruzarão e se tornarão parte desse folclore já conhecido. Bem-Vindos a Derry entende o peso da história que carrega e sabe exatamente onde quer chegar.