Três Graças embarca na onda de produções que mostram relações de amor entre mulheres com naturalidade e amplia referências dentro e fora da comunidade LGBT

A relação construída pelo casal Lorena (Alanis Guillen) e Juquinha (Gabriela Medvedovski), da novela “Três Graças“, da Rede Globo, reforça uma mudança importante na ficção brasileira. A trama mostra que duas mulheres podem viver um romance na TV sem sexualização excessiva, sofrimento imposto ou foco negativo. Em vez de servir como gatilho dramático, o relacionamento aparece como parte natural do enredo, assim como ocorre com casais heterossexuais.

Além disso, as personagens têm ganhado destaque por apresentarem um romance desenvolvido com leveza. A novela evita clichês, estereótipos e erotização, e aposta em cenas sutis e trocas afetivas graduais. Esse tipo de abordagem evidencia uma evolução que o público tem percebido e valorizado.

Esse movimento é mais amplo. A representação de casais lésbicos na ficção passou por transformações significativas ao longo dos anos. Antes, mulheres que se relacionavam entre si eram retratadas em papéis limitados, centrados em conflitos, punições ou roteiros que giravam apenas em torno da sexualidade. Hoje, cresce o interesse por narrativas que mostram a vida cotidiana, sem excepcionalização ou tragédias obrigatórias.

A seguir, destacamos obras que contribuíram para esse novo cenário. Essas produções dialogam com o público LGBTQIAPN+ e também com quem deseja entender como a televisão e o cinema influenciam debates sobre representatividade e diversidade.

Como “Três Graças” amplia narrativas de amor entre mulheres
Produções que normalizam o amor entre mulheres além do estereótipo | Crédito: HBO Max/Divulgação

Representações anteriores à “Três Graças” que romperam padrões

Uma das primeiras tentativas de tratar um casal lésbico com naturalidade em uma série de grande audiência aconteceu na série ER, com Kerry Weaver (Laura Innes) e Kim Legaspi (Elizabeth Mitchell) no final dos anos 1990 e início dos anos 2000.

Embora a trama ainda carregasse limitações típicas do período, o casal marcou um ponto de inflexão ao apresentar duas profissionais adultas lidando com dilemas de carreira, ética e convivência hospitalar, e não com narrativas centradas exclusivamente em sua sexualidade. Esse tipo de abordagem abriu espaço para que outras produções pudessem trabalhar relações lésbicas com menos camadas de estigma.

Na mesma época, “Buffy, A Caça-Vampiros” introduziu Willow (Alyson Hannigan) e Tara (Amber Benson), um dos casais sáficos mais conhecidos da TV. A relação entre elas se desenvolveu de maneira orgânica, acompanhando amizade, parceria e crescimento pessoal. Mesmo com desafios narrativos que fazem parte do gênero fantástico, a série apresentou longos períodos em que o casal existia sem ser reduzido a conflito ou fetichização, ajudando a construir novas referências para representações lésbicas nos anos seguintes.

Outro marco relevante surgiu em 2016 com “San Junipero“, episódio de “Black Mirror“. Kelly (Gugu Mbatha Raw) e Yorkie (Mackenzie Diaz) vivem uma história que discute memória, escolha e identidade sem recorrer a punição ou sacrifícios associados à sexualidade. O episódio foi apontado como um divisor de águas por retratar um relacionamento entre mulheres em um contexto que não as coloca como alvo de dor ou violência, fato incomum em narrativas distópicas do período.

Amor entre mulheres nas séries - San Junipero
Casal de San Junipero | Foto: Laurie Sparham/Netflix

No cinema

O cinema também contribuiu para esse processo. Em “2 Garotas in Love” (1995), por exemplo, a narrativa se destacou ao apresentar Randy (Laurel Holloman) e Evie (Nicole Ari Parker) de maneira que foge aos modelos tradicionais de conflito extremo. Em vez de apostar em estereótipos, o longa acompanha duas adolescentes de realidades diferentes que, pouco a pouco, constroem um vínculo afetivo baseado em conversas, descobertas e amadurecimento. Assim, o filme evita a erotização e se distancia das punições narrativas comuns em histórias sáficas da época.

Embora ainda pouco lembrado pelo público geral, “2 Garotas in Love” é considerado um dos primeiros filmes a colocar um casal lésbico no centro da trama de forma humanizada. Dessa forma, destaca o cotidiano, a intimidade e as decisões pessoais como elementos naturais da jornada amorosa das personagens, e não como exceção ou tabu.

Uma década depois, “Imagine Eu e Você” (2005) reforçou essa mudança de perspectiva. Nele, Luce (Lena Headey) e Rachel (Piper Perabo) protagonizam uma história de descoberta afetiva que, novamente, se afasta tanto da erotização quanto da tragédia. Além disso, o filme prioriza o encontro emocional entre as personagens, construído por meio de diálogos, convivência e incompatibilidades éticas. Assim, a narrativa funciona como uma alternativa aos modelos dramáticos que tradicionalmente marcaram histórias de amor entre mulheres, consolidando um espaço mais amplo para relações tratadas com naturalidade no audiovisual.

Amor entre mulheres nas séries - Orphan Black
Cozima e Dapnhe foram um belo casal na série | Crédito: BBC América/Divulgação

Casais da TV que consolidaram novas referências

A partir da década de 2010, a presença de casais lésbicos tratados com normalidade se intensificou com produções que adotam perspectivas mais amplas sobre afeto, conflito e rotinas compartilhadas.

Em Glee, Santana Lopez (Naya Rivera) e Brittany Pierce (Heather Morris) se consolidaram como um casal com jornada própria, integrando humor, decisões de vida e desafios pessoais ao longo das temporadas. A presença das duas influenciou debates sobre sexualidade na TV adolescente, sobretudo por mostrar uma relação que não ficava restrita ao romance e se misturava à dinâmica escolar e familiar.

Na mesma linha, “Lendas do Amanhã” apresentou Sara Lance (Caity Lotz) e Ava Sharpe (Jas Macallan) como um casal construído dentro do gênero de aventura. Elas se desenvolvem a partir da convivência profissional, divergências e decisões estratégicas. A relação se torna parte da lógica do time de heróis. Assim, ela não funciona como exceção ou elemento isolado, permitindo que o público enxergue o casal como parte orgânica de um enredo maior.

Em “Orphan Black“, somos apresentados a Cosima Niehaus (Alexandra Maslany) e Delphine Cormier (Évelyne Brochu). Elas ocupam função central na série, com uma relação marcada por colaboração científica e dilemas éticos. A narrativa não trata o romance como elemento marginal, mas como parte das escolhas que moldam a trama de investigação genética e clonagem. Assim, o casal existe como parte de uma estrutura complexa, afastada de fetichização e conflitos punitivos.

Amor entre mulheres nas séries
Willow e Tara, de Buffy, A Caçadora de Vampiros | Crédito: Warner Bros./Divulgação

Novas camadas para o amor entre mulheres

Em “Grey’s Anatomy“, Callie Torres (Sara Ramírez) e Arizona Robbins (Jessica Capshaw) se consolidaram como uma das representações mais consistentes do amor entre mulheres em uma série de grande audiência. A série é conhecida por tramas intensas, romances acelerados e alta carga de sexualização envolvendo diversos personagens. Ainda assim, Callie e Arizona conseguiram ocupar um espaço diferente dentro desse universo.

A relação entre elas foi construída com foco em decisões de vida, diferenças profissionais, planos familiares e disputas éticas que faziam parte do próprio ambiente hospitalar. Isso as afastou do padrão comum da época, no qual casais lésbicos eram frequentemente apresentados de maneira fetichizada ou como recurso dramático descartável.

O mesmo ocorre em Heartstopper, com Tara (Corinna Brown) e Darcy (Kizzy Edgell). O casal ocupa um ambiente escolar que valoriza pertencimento e apoio mútuo. As duas transitam pela narrativa com naturalidade. O relacionamento surge como parte da vida das personagens, e não como ponto de conflito. Assim, amplia referências sobre como o amor entre mulheres pode existir sem estigma.

Relações que se impõem pela convivência

Em “The Last of Us“, Ellie (Bella Ramsey) e Dina (Isabela Merced) aparecem em um cenário pós-apocalíptico. Ainda assim, o afeto entre elas é direto e integrado à dinâmica comunitária. Não há exotização. Há troca, cooperação e rotina, mesmo em um ambiente hostil. A série reforça que o amor entre mulheres também faz parte de histórias de sobrevivência.

Além disso, “The Wilds: Vidas Selvagens” apresenta Shelby (Mia Healey) e Toni (Erana James). A relação se constrói em meio a tensões e alianças, mas sem tragédia como eixo. O romance influencia escolhas internas do grupo, mantendo foco no desenvolvimento das personagens e não na sexualidade como elemento central.

Essas narrativas, juntas, ampliam o repertório do audiovisual. Elas mostram que o amor entre mulheres pode ser múltiplo, cotidiano e integrado à trama, sem erotização e sem punição.

Dia dos Namorados: casais da ficção - Callie e Arizona
Callie e Arizona em Grey’s Anatomy | Foto: Richard Cartwright/Walt Disney Television

Quando o amor entre mulheres deixa de ser exceção como em “Três Graças”

Esses casais mostram como a ficção tem ampliado possibilidades de retratar relações lésbicas de maneira naturalizada. Ao abandonar dramatizações centradas na sexualidade, essas produções normalizam narrativas que antes eram limitadas ou associadas ao sofrimento.

O resultado é uma variedade maior de referências culturais disponíveis ao público. Isso ajuda diferentes pessoas a compreender que relacionamentos entre mulheres podem fazer parte do cotidiano, sem excepcionalização ou estereótipos.

Imagem de capa: HBO Max/Divulgação