É redundante escrever sobre preconceito na jornada de uma das principais equipes da Marvel. Ao menos, era o que eu pensava ainda na adolescência — quando também amava o filme do Lanterna Verde (2011) de Martin Campbell. Melhor dizendo, uma época descartável e quase sem nenhum senso crítico da minha parte. Mal sabia o quanto os quadrinhos podiam me ensinar sobre preconceito.

O fato é que a mensagem que os X-Men passam nunca foi tão importante como é agora. No entanto, cabe a mim lembrar como essa minha afirmação é essencialmente verdadeira e embasada. Acomode-se que na coluna de hoje teremos um papo sobre religião, preconceito, racismo e tudo que “X-Men: Deus Ama, o Homem Mata” pode nos apresentar.  


Reprodução: Marvel Comics

Os X-Men foram concebidos em setembro de 1963 por dois nomes extremamente importantes para as histórias em quadrinhos: Stan Lee (1922 – 2018) e Jack Kirby (1917 – 1994). Na mesma época, havia uma crescente tensão política nos Estados Unidos. O preconceito não estava nas páginas de quadrinhos, estava na vida real.

Um longo processo estava em pauta: a luta pelos direitos civis da população negra norte-americana. Lee e Kirby trouxeram o tema para as páginas da nona arte. Ao menos é o que uma parte da fanbase dos Filhos do Átomo acredita. 

O preconceito na vida real

Erik Magnus Lehnsherr, o Magneto, é Malcolm X, líder e ativista social que tinha orgulho de sua raça, à colocando como prioridade em tudo. Mesmo que isso significasse usar meios criticados por outros ativistas para assegurar seu lugar na sociedade, a mesma que escravizou sua população por décadas. 


Reprodução: The Geek Twins 

Enquanto isso, Charles Francis Xavier, o Professor X, era Martin Luther King Jr., outro importante ativista e político que pensava diferente. Acreditava que brancos e negros podiam coexistir, em uma sociedade igualitária, respeitando ambos suas diferenças. Carregando um discurso mais pacífico, ao contrário de Malcom X, que era mais rígido e ferrenho em suas críticas.

Uma parte da fanbase acredita que ambos serviram de inspiração para os personagens da Marvel e não são, de fato, um retrato exato dos ativistas. Você pode conferir mais sobre essa discordância em alguns artigos.

Além disso, é importante lembrar que Magneto sofreu de perto os horrores dos campos de concentração devido a sua origem judaica. O que torna seu ódio pela humanidade ainda maior. Foi Claremont, inclusive, que deu a Magneto esse passado sombrio e real, tornando-o mais trabalhado em relação à construção do personagem. Sendo esse uma vivência pessoal do autor, uma vez que, ele mesmo é judeu por parte de mãe e sabe o quanto carregar um passado recheado de atrocidades pelo seus iguais é algo perturbador.

Fora isso, não preciso dizer quais são as alegorias dentro das páginas, né? Magneto com sua Irmandade e Xavier com seus X-Men são diferentes lados da mesma moeda. Contraponto esse que gerou inúmeras histórias maravilhosas – outras nem tanto – sobre preconceito, perseguição de uma raça e, principalmente, o genocídio da mesma (Genosha) — e que muitos “fãs” parecem ignorar.

 

O preconceito nos quadrinhos

 

Reprodução: Marvel Comics

Escrita por Chris Claremont e desenhada por Brent Anderson, “X-Men: Deus Ama, o Homem Mata” (1982) tornou-se uma porta de entrada para quem tem interesse em começar a ler sobre o grupo. No entanto, a HQ causou discussões ferrenhas devido às críticas ao fanatismo religioso elaboradas por Claremont — e muito bem elaboradas, diga-se de passagem. 

Discriminação e censura no Brasil

No Brasil, o título original foi censurado. Alguns editores, dentre eles pessoas religiosas, resolveram não levar o nome original. Assim, a graphic novel foi publicada aqui como “O Destino de Uma Raça”, substituindo o título “polêmico”. Entretanto, isso não alteraria nada a história original — nem a tornaria mais leve.

Na história, ao invés de inimigos interdimensionais, criaturas cósmicas ou mutantes maléficos, a equipe criada por Lee e Kirby enfrentam um inimigo mais poderoso — e também real, o preconceito. Algo constantemente presente na histórias e não protagonizadas somente por seres humanos.

Reprodução: Marvel Comics

Dessa vez, os mutantes enfrentam uma caçada midiática protagonizada pelo reverendo William Stryker. Diante das falas preconceituosas, de um cenário com cara de seita e muito, muito pânico moral, Stryker tem um objetivo: eliminar toda a raça mutante através do preconceito durante ás páginas do quadrinho. O que ele não esperava era uma aliança entre os X-Men e Magneto, principalmente após o sequestro de Ororo Munroe (Tempestade), Scott Summers (Ciclope) e Charles Xavier (Professor X).  

Reprodução: Marvel Comics

A voz como arma do preconceito

Antes do sequestro, Xavier pontua a principal arma de Stryker: ideias. Essas que possuem ódio, preconceito e são utilizadas como arma pelo reverendo. As articulações são claras: todo mutante é um perigo e deve ser exterminado, não importando sua idade. Bem parecido com outros discursos históricos, não? Ainda na história, Stryker protagoniza uma das cenas mais chocantes: a crucificação de Charles Xavier durante uma sessão de lavagem cerebral. Onde Xavier, como prova de “lealdade” ao reverendo e sua causa, deve matar Tempestade e Ciclope. O que ele faz — pelo menos é o que Stryker pensa. 

Reprodução: Marvel Comcis

Como um clássico vilão quadrinistico, Stryker utiliza os poderes de Xavier para assassinar mutantes e, pasmem, pessoas. Você não pensou que o ódio dele era exclusivo dos portadores do Gene X, né? Ele quer a morte de todos que pensam diferente dele. Todos. Incluindo, sua principal aliada que, durante toda a história, o auxiliou. 

No entanto, o que ele não esperava era que cometeria ele mesmo essa atrocidade ao vivo. Diante de representantes do senado americano, seus fiéis, a polícia e, principalmente, a mídia. Protagonizando então um dos momentos mais cruéis da HQ — tudo isso diante a declamação de versículos bíblicos. Fora o preconceito não velado nas páginas do quadrinho.

O reflexo do ódio preconceituoso de Stryker

O misto entre o autoritarismo religioso e o fascismo político não é caricato, é real. Após matar sua aliada, Stryker redireciona seu ódio para Kitty Pride, personagem importante para a história. Uma arma separa seus ideais religiosos – quase inexistentes – de um assassinato. Contudo, um policial acaba interferindo em sua ação. 


Reprodução: Marvel Comics


E, com isso, Stryker é parado. Porém, como Xavier disse, armas não são capazes de protagonizar o que ideias são. O reverendo pode ter morrido, mas seu ódio e a semente de todo o preconceito causado está plantada — e longe de ser esquecida. Outros Strykers virão e, com eles, mais ódio nascerá. No final da história, Charles Xavier chega a optar se aliar a Magneto, entretanto, é parado por seus alunos. Protagonizando um momento de fraqueza e também um dos mais importantes da história. 

Reprodução: Marvel Comics

Uma conclusão importante e atual

“X-Men: Deus Ama, o Homem Mata” mostra o quanto o fanatismo religioso pode ser perigoso. Assim como suas ideias por trás do ódio e do preconceito — há muito escondidas através da perseguição para com o público LGBTQIAP+, entre outros grupos que fazem parte de uma minoria. Contudo, não somente o fanatismo religioso, mas todo e qualquer fanatismo. A obra é rica em parafrasear o preconceito além das páginas em quadrinhos.

Por enquanto é utópico pensar em uma sociedade livre de preconceitos. Ainda assim, espero que isso aconteça o quanto antes. Assim como os X-Men, as pessoas apenas querem viver e desfrutar dos prazeres de serem elas mesmas. Sem qualquer medo ou receio. É por isso que devemos combater qualquer preconceito além das páginas dos quadrinhos, mas também na vida real. Principalmente na vida real.