“Tudo que eu não invento é falso.” – Manoel de Barros

O filme Do Sul, A Vingança tem como principal argumento de marketing o fato de ser, supostamente, o primeiro longa-metragem rodado inteiramente no Mato Grosso do Sul. A afirmação foi amplamente divulgada por diversos veículos de imprensa, com base em materiais promocionais. No entanto, uma análise mais cuidadosa levanta dúvidas, outras produções regionais exibidas em eventos como o Bonito Cine Sur também poderiam reivindicar esse pioneirismo?

Independentemente da legitimidade do título de “primeiro”, o longa representa um esforço raro de realização cinematográfica na região Centro-Oeste, com foco nas fronteiras entre Brasil, Paraguai e Bolívia. Assim, a narrativa segue a tradição dos thrillers de fronteira, onde o território é retratado como um cenário dominado por políticos corruptos, narcotraficantes e assassinos de aluguel, uma abordagem semelhante à forma como o cinema norte-americano representa o México.

Crítica | Do Sul, a Vingança
Imagem: Kolbe Arte

O enredo acompanha Lauriano (Felipe Lourenço), um escritor especializado em obras de true crime sobre o submundo do crime organizado brasileiro. Ao contrário da maioria dos autores do gênero, ele se interessa por traficantes e milicianos, que entrevista pessoalmente em busca de material para seus livros. Apesar da postura pacata e protocolar, Lauriano se envolve com figuras perigosas que lhe revelam planos escusos com surpreendente facilidade, uma dinâmica que desafia a credibilidade do roteiro.

Em determinado momento, Lauriano parte em busca de um personagem misterioso chamado Jacaré (Espedito Di Montebranco), por recomendação do político Victor Bautista (Leandro Faria), que cumpre prisão domiciliar. Então, a partir daí, a trama se complica com múltiplos personagens que se traem, manipulam e trocam de lado constantemente, criando uma narrativa rocambolesca e difícil de acompanhar.

Clichês estilísticos, problemas técnicos e representações questionáveis

Crítica | Do Sul, a Vingança
Imagem: Kolbe Arte

A direção de Fábio Flecha demonstra forte inspiração no cinema de ação norte-americano, especialmente nas obras de Quentin Tarantino e Robert Rodriguez. O filme recorre a flashbacks em preto e branco com detalhes vermelhos em destaque, uso estilizado de armas apontadas diretamente para a câmera e personagens caricatos que fumam charutos em poses exageradas. No entanto, essas escolhas estéticas nem sempre se sustentam, resultando em um conjunto visualmente incoerente e narrativamente confuso.

Entre os principais problemas técnicos estão a má sincronização do áudio, cenas de ação pouco convincentes, efeitos sonoros mal-executados e transições abruptas. A inclusão de elementos como letreiros explicativos e momentos de humor pastelão contribui para o tom errático da obra, que não define com clareza se pretende ser crítica social, sátira ou apenas entretenimento explosivo.

Além disso, as personagens femininas são retratadas de forma sexualizada do início ao fim. Seja a delegada que troca de roupa diante do protagonista ou as dançarinas armadas chamadas de prostitutas, todas seguem um mesmo padrão de objetificação. A tentativa de empoderamento ao colocá-las em situações de combate não compensa a superficialidade da construção dessas figuras.

Outro ponto sensível é a representação dos indígenas guaicurus. Uma das poucas falas de uma personagem indígena feminina vem acompanhada por um letreiro com erros gramaticais, transformando sua participação em motivo de escárnio. A suposta valorização da cultura local se perde em estereótipos e abordagens desrespeitosas.

Falta de profundidade na abordagem da fronteira

Crítica | Do Sul, a Vingança
Imagem: Kolbe Arte

Apesar de ambientado em uma região rica em tensões sociais, políticas e culturais, o filme não explora de maneira consistente essas especificidades. A fronteira sul-mato-grossense serve apenas como pano de fundo genérico para cenas de violência. Elementos que poderiam conferir densidade à narrativa, como o conservadorismo religioso, o avanço do agronegócio e as tensões culturais locais, acabam ficando de lado em favor de uma ação genérica e sem raízes.

O personagem Jacaré até tenta levantar uma discussão sobre a fascinação nacional pela violência, mas o discurso perde força ao ser embalado por uma performance pretensiosa com dança contemporânea em câmera lenta, mais um exemplo de excesso estético sem função narrativa clara.

Do Sul, A Vingança tem ideias promissoras e um ator protagonista expressivo, mas se perde em escolhas estéticas inconsistentes e em um roteiro que privilegia o espetáculo à reflexão. Felipe Lourenço entrega uma atuação comprometida, ainda que deslocada do tom geral do filme. Seu desempenho, por vezes, parece pertencer a outro projeto, mais sério e menos caricato.

A tentativa de criar um faroeste brasileiro situado no Centro-Oeste poderia ter sido uma oportunidade valiosa para discutir as contradições do país. Contudo, ao optar por emular um modelo hollywoodiano sem se adaptar ao contexto local, o longa entrega uma experiência irregular e superficial, que se contenta em explorar uma violência estilizada sem a questionar de fato.