Grande Sertão é um grande acerto do cinema nacional, conquistado a partir da visão irretocável de Guel Arraes da releitura contemporânea do clássico da literatura “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa. E se há algo na arte que mais me encanta é a poesia das cenas, dos sons, dos olhares e claro, de uma boa direção.
O filme
“Grande Sertão,” dirigido por Guel Arraes, é uma obra cinematográfica que se destaca pela impecável direção, capaz de transformar a poesia em imagens vivas e coloridas, e de dar asas à imaginação do espectador. Arraes, com sua visão única, consegue transpor a essência literária do clássico de Guimarães Rosa para a tela, criando um universo visualmente deslumbrante e poeticamente envolvente.
A atualização da história original, que transporta os jagunços do sertão para as organizações criminosas de uma periferia urbana cercada por muros gigantescos, provoca reflexões profundas. O filme questiona se o futuro é sempre um reflexo de nossos anseios passados. Será que Guimarães Rosa imaginou sua obra tanto para o seu tempo quanto para o futuro? O filme sugere que, em cada etapa da sociedade, revisitamos os ensinamentos dos antigos escritores e filósofos, buscando respostas para os dilemas contemporâneos?
Roteiro honra obra de Guimarães Rosa e honra sua ousadia através do tempo
O roteiro de “Grande Sertão” transcende ao abordar temas de grande relevância social e política, os mesmos que Guimarães Rosa já ousava explorar em sua obra original. A adaptação para o cinema não só honra a profundidade literária do clássico, mas também atualiza suas questões para refletir os desafios contemporâneos. Desigualdade social, política, sexualidade e homossexualidade são tratados com sensibilidade e profundidade, promovendo uma reflexão necessária sobre nossa sociedade.
A desigualdade social, tema central tanto na obra original quanto na adaptação, é apresentada de forma crua e realista. A transposição dos jagunços para as organizações criminosas urbanas destacam como a marginalização e a falta de oportunidades perpetuam ciclos de violência e pobreza.
A violência nas periferias e o derramamento de sangue nas metrópoles são retratados de maneira visceral, evidenciando a brutalidade que permeia o cotidiano de muitos. Essas cenas nos confrontam com a realidade dura e muitas vezes ignorada de quem vive à margem da sociedade. A violência é apresentada não apenas como um fato, mas como uma consequência de sistemas injustos e opressivos.
Política, outro tema central, é abordada com uma crítica incisiva às dinâmicas de poder e corrupção que permeiam tanto o sertão quanto as metrópoles. O filme revela como as decisões políticas impactam diretamente a vida nas periferias, muitas vezes de maneira devastadora. A luta por justiça e a busca por mudanças estruturais são questões que ressoam ao longo da narrativa, convidando o espectador a refletir sobre seu próprio papel na construção de uma sociedade mais justa.
A relação entre Riobaldo e Diadorim é tratada com delicadeza, desafiando os preconceitos e normas de gênero. Essa abordagem oferece uma visão mais inclusiva e humana, promovendo a aceitação e o respeito pela diversidade sexual.
Grande Sertão faz jus ao título de Sétima Arte do cinema
A fotografia de “Grande Sertão” é uma obra-prima em si, mesclando habilmente tons de cinza para capturar a aridez e a rusticidade do Sertão com cores vivas e vibrantes que refletem os sentimentos e emoções dos personagens. Essa dualidade cromática não apenas define os ambientes, mas também intensifica a narrativa emocional, criando um contraste visual que destaca a profundidade dos conflitos internos e externos. Os tons de cinza evocam a dureza e a imutabilidade da paisagem sertaneja, que nesse caso aqui é concreto e cimento, enquanto as cores exuberantes dão vida às complexas relações humanas, permitindo ao público sentir a intensidade das paixões, dos sonhos e das dores vividas pelos protagonistas. Através dessa combinação, a fotografia transcende o mero cenário, tornando-se um elemento narrativo essencial que amplifica a experiência cinematográfica.
Experiência viva do teatro em tela, que vale a pena ser assistida no cinema
“Grande Sertão” proporciona uma experiência cinematográfica que se assemelha a viver o teatro em tela. A mescla de atuação teatral com nuances de arte circense, a fotografia que alterna entre tons de cinza e cores vibrantes, e a profunda exploração de temas sociais e existenciais fazem deste filme uma obra imperdível.
Assistir a “Grande Sertão” no cinema é mais do que ver um filme; é participar de uma experiência viva, intensa e transformadora, que ecoa os ensinamentos de Guimarães Rosa enquanto dialoga com as questões do nosso tempo. Vale a pena ser assistido, não apenas como uma adaptação literária, mas como uma celebração da arte em sua forma mais completa e emocionante.
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