Nos últimos anos, o cinema tem atravessado uma notável transformação em sua abordagem às questões de saúde mental, quebrando paradigmas estabelecidos e abandonando as caricaturas simplistas que por tanto tempo dominaram as telas. No contexto desse renascimento narrativo, surge “Letícia”, filme que aborda a Mitomania, um transtorno de saúde mental caracterizado por uma compulsão patológica de mentir.
Filmado 100% em Brasília, o filme tem um aspecto urbano interessante e uma fotografia que enche os olhos. Mas fico me perguntando, será que a escolha de filmar na capital federal, em um tema que envolve mentiras, não foi uma bela coincidência?
Aqui preciso fazer um adendo importante, decidi não falar abertamente sobre as questões mais profundas da personagem para poupar os espectadores de spoilers importantes.
Um filme que aborda de forma humana os transtornos mentais
Filmes que antes reduziam transtornos complexos a meros estereótipos agora mergulham nas profundezas da psique humana, oferecendo retratos mais autênticos e sensíveis. Esse movimento representa uma evolução significativa na sétima arte, onde a representação da saúde mental não apenas ganha nuances de realidade, mas também convida o público a uma empatia genuína.
O filme, dirigido por Cristiano Vieira e estrelado por Sophia Abrahão, é um drama com elementos da comédia romântica, aborda temas como saúde mental, masculinidade e maternidade. Longe de demonizar seus personagens, a obra explora com delicadeza e profundidade as camadas de complexidade que envolvem essa condição psicológica, desafiando o espectador a refletir sobre a natureza da verdade e a fragilidade da mente humana.
Com atuações bem centradas, e uma direção que valoriza as relações entre os personagens, a obra acaba por trazer debates importantes. Não somente a mitomania, mas também as mentiras do dia a dia, aquelas que achamos que não fazem mal a ninguém. Essa dicotomia, entre a boa mentira e a mentira patológica é muito interessante.
Mas há também outros debates importantes, alguns mais objetivos, como o papel da maternidade na vida da mulher, mas outros debates que ficam entrelinhas, como o excesso de consumo de pornografia. Cristiano Vieira acende essas fagulhas durantes o filme, e que, apesar de não tratá-los como objeto central da trama, acaba os deixando como discussões em aberto para “mais tarde”.
Atuações e Trama impressionam pela simplicidade e poder
Sophia Abrahão interpreta Letícia, essa personagem cheia de camadas, introduzida de uma maneira bem simples na trama. Aos poucos ela vai tomando conta da tela com grandiosidade, e uma atuação muito convincente. E nesse caso, ser convincente é extremamente necessário para dar a dualidade de personalidades que a personagem tem. Ao mesmo tempo, temos um Gustavo, (Bernardo Felinto), que entrega um personagem complexo, cheio de segredos e desejos obscuros. A relação entre os dois é a perfeita dicotomia da mentira, e ambos os personagens têm papéis antagônicos, cada qual com sua complexidade.
O enredo do filme tem traços interessantes de drama, comédia e esbarra em um suspense bem tímido. Em conversa com o diretor, ele explicou que a ideia inicial seria a de contar uma história bem diferente, de uma pessoa mentirosa, que mentia para tirar vantagem. Mas ao perceber que seria um tema vazio e frio, decidiram assumir que Letícia seria mito maniaca. E essa mudança foi muito assertiva para o filme.
“Letícia” é um filme para assistir de mente aberta
Ao fazer a escolha de tratar do tema principal como um transtorno mental e não como um simples esteriótipo da mentira, como outras obras já fizeram, Cristiano Vieira traz profundidade para um tema não convencional para as telas. Ao mesmo tempo, em que faz uma obra de ficção bonita de se assistir, faz um serviço social muito importante. Claro, é preciso ter uma mente aberta para entender todas as propostas ali colocadas, afinal de contas, existe uma linha muito tênue entre as mentiras contadas. O que é mentira social e o que é sintoma da mitomania?
É um belíssimo filme, com uma qualidade técnica e de atuação que merece destaque e vale a pena assistir nos cinemas.
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