Lispectorante, novo longa de Renata Pinheiro, não é um filme que se assiste — é um filme que se experimenta. A produção se inspira na escrita densa e subjetiva de Clarice Lispector e propõe uma imersão sensorial onde imagem, som e tempo fluem como consciência.

Antes de mais nada, o filme não é uma adaptação literal, mas um esforço legítimo em traduzir o espírito de Clarice para a linguagem do cinema. O filme tem direção de Renata Pinheiro que também assina o roteiro com Sergio Oliveira. O elenco é formado por Marcélia Cartaxo, Pedro Wagner, Grace Passô, Clara Pinheiro e Gheuza.

Marcélia Cartaxo retorna 40 anos depois, ao universo de Clarice Lispector. Cartaxo estrelou o filme “A Hora da Estrela” (1985) adaptação do livro de mesmo nome, interpretanto grandiosamente a personagem Macabéa. Confesso que foi uma grande surpresa reconhecer a atriz nos momentos inicias do filme. Isso me deu mais ânimo para assistir à produção.

Um filme com espírito de Clarice

Lispectorante passa em um Recife despojado de realismo e carregado de simbolismo. O filme constrói uma cidade que respira, sofre e se reinventa, assim como seus personagens. Clarice Lispector nasceu em Chechelnyk, na Ucrânia, em 1920, mas chegou ao Brasil ainda bebê com sua família judaica. O destino foi Recife, cidade onde Clarice passou sua infância e parte da adolescência, e que teve um impacto profundo e duradouro na formação da sua sensibilidade e imaginação literária.

De acordo com a sinopse, Glória Hartman (Marcélia Cartaxo), uma mulher madura que atravessa uma crise existencial e financeira, volta à sua cidade natal, que passa por um processo de abandono. Através de uma fenda nas ruínas de onde morou a escritora Clarice Lispector, Glória começa a ver cenas fantásticas que vão alterar sua vida.

Glória e Guitar (Pedro Wagner) não são protagonistas convencionais; são presenças que se movem entre o concreto e o abstrato, em busca de algo que talvez nem possa ser nomeado.

Lispectorante foto 1
Imagem: Divulgação

Certamente, um dos maiores trunfos do filme é a sua estática. Renata Pinheiro, que também é artista plástica, preenche a tela com composições plásticas marcantes, onde cada quadro carrega densidade emocional. O uso da cor, da textura e da arquitetura abandonada cria uma sensação de transição constante — entre o passado e o presente, entre o corpo e o espírito. Aqui, o Recife não é cenário, mas personagem. Recife é Clarice Lispector.

Sobre a narrativa, ela é fluida, fragmentada e profundamente subjetiva. O roteiro parece obedecer mais à lógica dos pensamentos do que à estrutura tradicional de começo, meio e fim. Em muitos momentos, o filme se aproxima de um ensaio poético ou de uma instalação audiovisual. Infelizmente, isso pode afastar espectadores que buscam linearidade, mas será um prato cheio para quem aprecia o cinema como arte.

Um filme poético e desafiador

A presença de Clarice Lispector não está nos diálogos nem em citações diretas, mas na forma como o filme evoca sensações e coloca o espectador dentro de estados de alma. O silêncio, a introspecção, a inquietação existencial — todos são elementos clariceanos costurados com delicadeza e ousadia.

“Lispectorante” não oferece respostas fáceis — nem se propõe a isso. Seu mérito está justamente em provocar perguntas, em sugerir atmosferas, em despertar o olhar para o invisível e o inominável. É uma obra para ser sentida mais do que compreendida, e talvez seja aí que ela mais se aproxima da escritora que a inspira.

Em relação aos atores, todos entregaram ótimas atuações. O destaque certamente é de Marcélia Cartaxo. A sensação é de que Macabéa não morreu em “A Hora da Estrela”. Ela se deu bem na vida e virou Glória Hartman. Cartaxo consegue entregar à sua personagem toda a essência de Clarice Lispector.

Vale a pena assistir Lispectorante?

Lispectorante é um filme desafiador, belo e profundamente autoral. Um tributo sensível à escrita de Clarice Lispector e uma afirmação do cinema como linguagem poética e sensorial.

Lispectorante está em cartaz nos cinemas.