A simplicidade pode ser muito complexa quando podemos olhar para ela com atenção, e é assim que se enxergo “Marte Um”, filme de Gabriel Martins. Sucesso no Festival Sundance, e premiado como Melhor Filme, pelo júri popular em Gramado, esse longa pode ser sentido como uma roupa que cabe em todos.

O sonho de uma criança é algo que muitas das vezes é incompreendido, mas carrega muita verdade sobre quem somos. Abordar esse tema é ao mesmo tempo necessário e duro. Confronta a loucura que a vida nos propõe, e que muitas das vezes não nos damos conta. O sonho de ser quem gostaríamos de ser é repetidamente confrontado pelo que as pessoas esperam de nós e do que a realidade pode nos oferecer.

Deivid é só um garoto, mas seus sonhos são de gente grande. Ele é o caçula da família Martins, eles moram na periferia de Belo Horizonte, e o sonho de “Deivin” é ser astrofísico. Claro, a vida não entregou isso de bandeja para ele. Afinal de contas, para a maioria das crianças da periferia, o sonho comum é ser jogador de futebol. Mas esse é o sonho de seu pai, o Wellington, porteiro de um prédio de gente rica, ele sonha em ver seu filho jogar no Cruzeiro Esporte Clube. A saída da pobreza sempre foi colocada nas costas dos sonhos das crianças da periferia, o esporte sempre como saída para a ausência do estado.

Paralelamente, o filme também mostra que Eunice, a irmã mais velha, deseja ter uma vida fora daquela casa. Uma jovem universitária, que se apaixona por uma outra jovem, em um relacionamento entre mulheres. A delicadeza da relação entre as duas, o resultado daquele amor, como há de ser. Ou seja, tudo serve também ao proposito de lutar contra o preconceito tão enraizado na sociedade.

MARTE UM, de Gabriel Martins
Foto: Reprodução

Fotografia de um Belo Horizonte

A fotografia urbana desse longa também é algo que chama atenção, e em especial para esse crítico que escreve, já que consigo identificar e me familiarizar com os cenários. Entender como foi difícil, por exemplo, gravar na rodoviária de BH. Ou achar engraçado como as lanchonetes da cidade contam histórias sobre a população daqui. Me permito a escrever com certa liberdade, tal qual o “mineirês”, já que esse sotaque está presente o tempo todo nos diálogos.

E por falar em diálogo, preciso falar das atuações. Cícero Lucas, o garoto que vive Deivid, apesar de tímido na tela, consegue ser firme quando precisa. Seu pai, Wellington é interpretado por Carlos Francisco, que vem do teatro com todas as suas facetas. Rejane Faria está impecável como Tercia. Essas cenas em que ela está perturbada por conta da síndrome do pânico, trazem para a tela a agonia de quem vive esses traumas. Agora, Camilla Damião, ela entrega tudo. Talento, carisma, empoderamento, consegue nos convencer de seus dramas, de suas lutas, consegue nos fazer sentir o que ela sente. E só uma curiosidade, não consegui deixar de achar engraçado o craque do Cruzeiro Juan Pablo Sorrin fazer parte do elenco, e olha, até que se saiu bem.

MARTE UM, de Gabriel Martins
Foto: Reprodução

A profundidade é marca da simplicidade de “Marte Um”

Mas “Marte Um” é profundo, e não se resume somente a história linear do sonho infantil. Fala sobre família, fala sobre medos, traumas, preconceitos. Tercia, a matriarca da família sofre de síndrome do pânico, e encontra no SUS o tratamento para sua doença. Paralelo a isso tudo, a desigualdade social é evidenciada no trabalho de “Seu” Wellington. A maneira como ele é tratado pela sua patroa, a maneira como precisa estar sempre sorridente para ela e para os moradores do condomínio, e como é tratado quando precisa ser demitido. É a realidade do dia a dia do pobre sendo mostrada sem puder na tela. Isso não é demagogia, é a vida.

Gabriel foi muito feliz na junção de tantos temas sem parecer que cada uma fosse um filme a parte. Muito pelo contrário, ele consegue nos fazer sentir fazer parte daquele núcleo familiar, de tal forma que facilmente podemos nos enxergar naqueles papeis. Ele também é muito feliz ao não deixar o final ser trivial. Pelo contrário, a condução perfeita do ritmo do filme é finalizada com uma cena maravilhosa e emocionante, ao qual eu pude me enxergar com meus 12 anos sonhando no que eu queria ser no futuro. Felizmente me tornei crítico de cinema, para poder prestigiar o cinema nacional da maneira como ele merece.

Me darei ao direito de nesse caso não dar nota para o filme. Meu voto de confiança aqui fica como incentivo para que “Marte Um” represente bem o Brasil pelo mundo. A Embaúba Filmes é responsável pelo lançamento do filme Marte Um no Brasil.