Drama brasileiro encontra os desafios em levar uma história
do divã para as telonas

Com tons dramáticos e reflexivos, Virgínia e Adelaide traz a história real da dupla responsável em trazer a psicanálise ao Brasil. Abordando temas da própria saúde mental, e como esta abrange diversos outros aspectos da história brasileira e de seu povo. E assim, levantando discussões quanto a desigualdade social e como o preconceito está tão enraizado em nossas terras, impossibilitando a devida igualdade de oportunidades e respeito.

Estrelado por Gabriela Correa e Sophie Charlotte, o longa conta com a direção da dupla Yasmin Thayná e Jorge Furtado. Segue a sinopse do longa baseado nesta história real:

Virgínia Bicudo (Gabriela Correa), mulher negra, professora universitária e pioneira dos estudos sobre racismo no Brasil, torna-se a primeira paciente de Adelaide Koch (Sophie Charlotte), mulher judia, médica e psicanalista, que se muda para São Paulo em fuga da Alemanha nazista. Juntas, participam da fundação da psicanálise no país, abrindo espaço para as que vieram depois. 

Levantando bandeiras e abrindo espaços para discussões referentes ao cenário social brasileiro, Virgínia e Adelaide se aventura na dramática e real história por trás da psicanálise no Brasil. Mas será que o longa é bom?

Encarando o divã: os desafios em contar uma história real

Com cerca de 1h34min de duração, Virgínia e Adelaide constrói uma narrativa linear, mas com um desenvolvimento não tão simples. Na verdade, a sua história se desenrola em duas narrativas simultâneas, sendo a primeira – e principal – com o tom mais dramático, responsável por movimentar essa história pelas mãos das protagonistas.

Entretanto, essa narrativa se perde do meio para o final. E isso nem é pela complexidade de seu enredo, mas porque há lacunas importantes na história por si só. Para ser um pouco mais exato, há um abismo entre o meio e o clímax. Falta aqui uma ponte que “justifique“, as escolhas das personagens.

Ou melhor ainda, falta o desenvolvimento da história e das personagens, algo que motive a mudar de suas relações e ritmos de vida. Tudo bem, há uma frase que deixa implícito, porém, não é o suficiente para carregar todo o andar da história.

Para deixar ainda mais claro, a relação entre as duas personagens começa de uma maneira, e há uma pressa no desenvolvimento do longa, ocasionando um salto inexplicável para outro tipo de relacionamento. A personagem que tinha um certo sonho, logo desaparece, e outra persona assume aquele papel, com outros desejos e aspirações.

Enfim, a narrativa dramática e principal peca em sua linearidade, deixando o longa confuso e cru com tantas lacunas na história. Entretanto, o roteiro e a direção consegue surpreender com a ousadia da outra narrativa, como foi dito acima.

Entre drama e documentário: uma narrativa dentro da psiquê das personagens

gabriela correa virginia e adelaide
Imagem: Reprodução

Bom, apesar das lacunas em narrar uma história, há uma segunda narrativa acontecendo em paralelo, movimentando-se também pelas perspectivas das protagonistas. Porém, em um “plano subjetivo“, ou melhor, dentro da própria psiquê de cada personagem.

É uma estratégia ousada e arriscada, contudo, os monólogos de cada personagem constrói um diálogo indireto entre elas. É como se ambas as experiências, tão diferentes, ainda conseguissem se conversar pelas semelhanças em suas essências. Entre essas semelhanças: o confronto diante a situações de preconceitos e discriminação.

Essa segunda narrativa é um grande acerto do roteiro e da direção. Afinal, ele não só ousa para a elaboração da história, mas também colabora ao desenvolver e se aprofundar naturalmente as personagens de Gabriela Correa e Sophie Charlotte. É como se todo a superficialidade deixada na trama principal fosse compensada aqui.

Além disso, e se ainda não fosse o bastante, a segunda narrativa consegue se ousar ainda mais ao transitar entre tons dramáticos de um longa. Ao mesmo tempo, traz a seriedade informativa e documentos históricos, mesclando muito com elementos do gênero documentário, por assim dizer. E assim, o longa abre espaço para questionamentos quanto a sociedade brasileira, do modo a cutucar algumas feridas históricas.

Portanto, a narrativa do longa se desenvolve de maneira peculiar, mas agradável. Seria excelente, se não fosse pelas lacunas mencionadas acima.

Além do divã e das telas: uma reflexão sobre o Virgínia e Adelaide

gabriela correa sophie charlotte
Imagem: Divulgação

Um ponto-chave e um dos grandes acertos do longa está na forma como ele abre espaços para debates. Principalmente, para as discussões voltadas para as desigualdades sociais.

O longa se data aproximadamente durante a década de 1930 a 1940, um momento crítico para a humanidade, seja pelos reflexos da Segunda Guerra, bem como para os brasileiros, com a situação política do país da época – ditadura de Getúlio Vargas – e a abundância de imigrantes europeus, fugindo da guerra. Apesar de distante, mesmo depois de mais de 70 anos, ainda temos diversos problemas semelhantes daquela época.

Como já dito, o longa abre as portas, entretanto, nem sempre consegue aproveitar o espaço. Sim, ele traz a tela debates bem aquecidos quanto as discriminações raciais e como o preconceito está tão enraizado na população. Um preconceito que se fortalece por séculos e, até na atualidade, reforça padrões sociais. Desta perspectiva, o longa não erra e deixa ainda mais claro o valor que habita na luta antirracista e a necessidade da equidade em nossa sociedade.

“Dá-se um jeito”

Contudo, como já dito, nem todos os espaços são bem aproveitados. Virgínia e Adelaide questiona com sutileza um dos maiores pecados de nossa sociedade: a falta de acesso à saúde para todas as classes sociais. Com promessas de um discurso a favor de “democratizar a psicanálise”, a temática que poderia enriquecer ainda mais o longa, infelizmente, é deixada de lado. Afinal, como dito no filme “dá-se um jeito”.

Ora, não é assim que nossa saúde mental e física é levada em conta hoje em dia? Quem não é da elite, se vê em uma cruel encruzilhada: ou espera por um milagre para se curar quanto antes, ou então aguarda na fila quilométrica para um atendimento pela saúde pública. Por outro lado, a outra opção seria a família gastar rios de dinheiro – valores tão absurdos que escassa a sua própria qualidade de vida – por um plano de saúde mediano. O qual só oferecerá um serviço mediano ou reduzido, com consultas para daqui a uns meses e/ou de 20 minutos com um psicólogo ou fisioterapeuta, por exemplo. Mas dá-se um jeito, não é mesmo?

Imagem: Reprodução

Afinal, quem precisa de saúde? Quase não é importante, não é mesmo? Aliás, todos os brasileiros estão bem estáveis, com muito dinheiro e podendo muito bem que parar de trabalhar caso precise cuidar da sua saúde mental, não é mesmo? Bom, e se não estiver, dai dá-se um jeito. E se não der, a gente veste o paletó de madeira e enterra, não é mesmo? [leia- com ironia]

Enfim, o tal do “dá-se um jeito” tornou-se uma resposta da população para as questões sociais esquecidas, deixadas debaixo do tapete. Sim, temos programas sociais e o SUS que tentam fazer algo com as migalhas investidas – e ainda conseguem de fato -, mas ainda não é o suficiente, há muito o que melhorar. Enquanto haver fome, desabrigados ou filas de meses/anos, para uma cirurgia de urgência, ainda ficará claro a necessidade de melhorias nos sistemas de saúde e de assistências sociais.

No longa, Virgínia precisou dar um jeito para conseguir fazer a psicoterapia e análise com Adelaide, fazendo empréstimos para pagar a conta. Talvez, a superficialidade que o filme retratou o tema, tenha conseguido impactar na reflexão do tema. Pelo menos, deu-se um jeito deste crítico que aqui escreve refletir quanto a tamanha normalização que este problema está no cotidiano do brasileiro.

Sem mais delongas, Virgínia e Adelaide é bom?

virginia adelaide filme psicanalise
Imagem: Divulgação

Depois de uma longa reflexão e questionamentos, um último ressurge: o longa consegue acertar? Vale a pena assistir Virgínia e Adelaide?

Com 1h35min de duração, o longa traz uma trama que mescla elementos do drama com documentários, dividido em duas narrativas paralelas e que se complementam. Dito isso, o longa consegue ser linear, com uma narrativa não tão ritmica. Isso é, a transição entre as narrativas consegue ser inovador, mas acabou deixando lacunas, as quais geram um desenvolvimento confuso. Um exemplo claro disso é quanto o desenvolvimento e a evolução dos personagens e as relações entre si.

Assim, parece que faltou mais tempo para trabalhar a narrativa, ou então, houve cortes demais na edição final, precarizando o resultado do longa.

Em quesitos técnicos, o longa acerta pela sua fotografia e pelo cuidado em trabalhar com as camadas que montam uma cena. A câmera tem um cuidado em absorver alguns detalhes que enriquecem ainda mais a experiência. Aliás, o mesmo se pode dizer quanto a edição de som e a trilha sonora: são elementos bem cuidados que ampliam a experiência.

Dessa forma, se o longa fosse mais focado na parte documental, ele seria excelente. Ou então, se não houvesse tantas lacunas em sua trama principal, novamente, seria excelente. Porém, o que a direção e roteiro acerta tanto com a ousadia em inovar, se perde no que seria mais simples: desenvolver uma história linear.

Contudo, apesar das lacunas, Virginia e Adelaide ainda é um filme que vale sim a pena ser assistido. Seja para conhecer a origem da psicanálise no Brasil e a sua aceitação como um ramo da saúde, ou então para refletir quanto a nossa sociedade atual e as ideias atrasadas que ainda a sustenta.

Por fim, Virginia e Adelaide estreia na próxima quinta-feira, dia 08 de maio nos cinemas brasileiros.