Meiri é uma desenvolvedora brasileira queer baseada em Porto Alegre, que desde 2013 cria jogos como hobby. Começou com RPG Maker e atualmente desenvolve visual novels no Ren’py, assumindo todas as etapas do processo, desde a arte até a programação.

Em seu mais recente lançamento, Hydrangea, Meiri Games apresenta uma envolvente visual novel que combina romance e terror psicológico, inspirada no trope da doença de Hanahaki. Com quatro finais diferentes, a história conta com trilha sonora e arte original, prometendo uma experiência única de cerca de 20 mil palavras. E o melhor de tudo: Hydrangea está disponível gratuitamente na Steam.

Confira a entrevista com Meiri:

Primeiramente, poderia se apresentar para os nossos leitores?

Meu nome é Meiri, sou uma pequena desenvolvedora Brasileira queer baseada em Porto Alegre. Faço jogos como hobby desde 2013, iniciando com RPG Maker, e hoje desenvolvo visual novels com Ren’py.

A grande maioria dos meus projetos foram desenvolvidos solo, ou seja, eu trabalhei sozinha, criando a arte, escrita, scripting, programação, marketing, etc, e utilizando recursos gratuitos para os aspectos que eu não posso produzir sozinha, como a música e os fundos.

Tenho mais de 10 jogos disponíveis para download na minha página do itchio, a grande maioria 100% gratuitos, e com histórias ou representividade queer. Eu gosto muito de experimentar com gêneros, então já fiz jogos de comédia, terror, romance, aventura…

Recorro a doações e compras de DLC para o orçamento dos meus jogos e outras coisas relacionadas a eles – por exemplo, a taxa de publicação de $100 na Steam de Hydrangea veio de doações de fãs, e pude encomendar um design de mascote para a Meiri Games com as doações também.

De acordo com a descrição do jogo, ele foi feito para o evento chamado Yandere Game Jam, então poderia falar um pouco sobre o que é e quais eram suas expectativas ao se inscrever?

A Yandere Game Jam é uma game jam com a temática Yandere, que ocorre todos os anos. Tem a deadline de 3 meses, e grande parte dos jogos lançados para a jam são visual novels. No caso, Hydrangea foi lançada bem no final da data limite, em Março.

Eu cheguei nessa jam com uma ideia bem desenvolvida em mente. Já no inicio de 2023 eu fiquei com o conceito de ‘doença de Hanahaki com um twist’ na cabeça. Aos poucos, com os meus estudos em Psicologia e vivência clinica como estagiária, decidi focar nos relacionamentos abusivos e gaslighting dentro de um romance Yandere.

Minha expectativa era de experienciar como é liderar uma equipe para fazer um jogo. Já tinha participado de jams antes, mas como dev solo, então queria montar um time e trabalhar junto com outros talentos – artistas, programadores, compositores – para um criar um projeto bacana.

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Considerando que o jogo foi feito em 3 meses para o evento, quais foram os maiores desafios enfrentados durante o desenvolvimento de “Hydrangea” e quais histórias você tem para compartilhar? 

Primeiramente, foi minha primeira vez trabalhando com uma equipe de voluntários. Eu nunca tinha liderado um time antes, e parte do pessoal que se voluntariou também nunca tinha participado de uma game jam antes, ou se tinha, o projeto nunca chegou a ser lançado.

O maior desafio foi o fato de que ocorreram vários problemas pessoais, como trabalho e emergências pessoais com membros da equipe, que acabaram impactando o desenvolvimento do jogo. Em game dev, se um aspecto não é finalizado, acaba atrasando tudo. Por exemplo, nós precisamos do design do personagem para fazer os CGs, precisamos da música para terminar o scripting, precisamos dos assets de UI para programar o UI… e assim vai.

Hoje, eu sei que se participar de uma game jam novamente, vou deixar bem organizado as prioridades na entrega de assets e ter plano B, C, e D para caso algo dê errado. Foi um estresse tremendo quando eu vi que as coisas não estavam progredindo.

No final, não estava dando tempo para conseguirmos fazer tudo que queríamos para o jogo. O plano era uma ilustração para cada final, totalizando 4, mas o tempo estava acabando, então eu aceitei que teríamos que lançar o jogo sem 3 ilustrações.

Aí, do nada, a Nevi – uma amiga querida que estava no time como apoio emocional, me ajudando com o aspecto da comunicação – brotou com as 3 ilustrações totalmente completas, coloridas, finalizadas. Não era dever dela, e foi tudo de última hora, ela simplesmente fez tudo em menos de 4 dias! É por isso que há uma diferença na arte do jogo. Nós fizemos o possível e o impossível para que Hydrangea se realizasse da forma que eu sonhava.

Quando todos os assets estavam nas minhas mãos, era hora de terminar o scripting. No contexto de visual novels feitas na engine Ren’py, scripting é quando você coloca todos os assets e diz para o jogo quando e onde eles aparecem. Qual expressão o personagem mostra agora? Qual música vai tocar? Qual será a transição da cena? Quanto tempo de pausa? O zoom vai focar em qual parte do personagem? E assim vai…

Não foi tão simples quanto eu imaginava que seria – sempre fiz scripting sozinha e nunca deu problemas, mas dessa vez foi uma bola de neve. E ao mesmo tempo tinha o bugtesting, outra coisa que eu tive que fazer sozinha.  Como o jogo tem a opção de escolher o interesse romântico, o trabalho foi em dobro – era necessário programar e checar se as expressões do Yuu e da Yua estavam corretas. Precisava ver se o Yuu aparecia quando a Yua era escolhida, e vice-versa. Às vezes, os dois apareciam. Outras vezes, apareciam com expressões flutuantes, trocavam de roupa quando não precisava, ou o efeito de zoom fazia com que apenas as pernas deles aparecessem na tela.

O jogo estava repleto de bugs, typos e crashes pouco antes de ser lançado, e até quando foi, tive que lançar várias atualizações. Enquanto isso, também tinha que trabalhar na tradução PTBR – 20 mil palavras para serem traduzidas. Eu estava desesperada.

Foi um estresse tremendo. Eu deveria ter recrutado um scripter e um bugtester para me ajudar, mas eu não tinha noção alguma do que estava me esperando. Faltavam apenas alguns dias para a deadline, e eu era movida puramente por adrenalina. Não dormia direito, só pensava no jogo, chorava, o desespero era imenso.

Depois que Hydrangea foi lançado, com muitos reviews positivos e downloads – hoje, no itchio, batemos 14 mil downloads – eu finalmente pude descansar. Fiquei 2 meses em um burnout pesado.

Ao mesmo tempo que estava muito feliz com a recepção do jogo, precisava de um bom tempo longe do projeto, e de game dev em geral (foi a primeira vez que fiquei tanto tempo sem abrir sequer um rascunho!) – aprendi muito com meus erros.

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Que tipo de impacto você espera que “Hydrangea” tenha nos jogadores e quais elementos são fundamentais para transmitir a atmosfera do jogo considerando que é uma visual novel de romance/horror psicológico? 

Gostaria que Hydrangea ajudasse jogadores a pensarem sobre suas próprias relações e vivências, positivas ou negativas. Gostaria que fosse um abraço para quem já passou por situações como a que são mostradas no jogo. Digo situações, pois Hydrangea não é apenas sobre relacionamentos abusivos, mas também sobre violência multigeracional, abuso infantil, e outros tópicos pesados que não são normalmente mostrados tão vividamente quanto no jogo.

O terror de Hydrangea vem do fato de que o que está acontecendo é vivido e reproduzido na realidade. O pavor, ansiedade, confusão, e medo. A manipulação emocional, a repetição do ciclo de abuso mostrada de forma literal e metafórica, a forma com que o protagonista perde sua individualidade ao decorrer do romance – é daí que vem o terror psicológico. Pois são coisas que acontecem conosco na vida real.

Para mim, esse tipo de terror é o mais interessante e impactante.

É perceptível a representação de personagens não-binários no jogo. Referente a isso, qual a sua visão sobre a inclusão da comunidade LGBT nos jogos? Qual importância você vê nessa representação para os jogadores?

Representação é algo importante para mim. Sei como é crescer e viver num mundo onde os livros, séries, e jogos ao redor não mostram pessoas como como eu. Desde os jogos mais antigos não oferecendo a opção de personagens femininas ou jogos de romance bloqueando romances homoafetivos, é algo que eu e outras pessoas queer sentimos na pele.

Não vou mentir – programar os pronomes neutros foi um desafio. Não é uma feature que muitos considerariam essencial, mas para mim foi. Eu não lançaria Hydrangea sem essa opção. Até quando o estresse da deadline se aproximava, não pensei em momento algum em desistir dessa opção.

Desde o principio, queria que fosse um jogo de romance com opções de customizar personagens queer. Em Hydrangea, você pode ser uma mulher em um romance com uma mulher, uma pessoa não-binária em um romance com uma pessoa de aparência feminina e pronomes masculinos, entre muitas outras possibilidades de relacionamentos queer.

Ainda, o personagem que não é escolhido como interesse romântico (o outro gêmeo) sempre é não-binário, utilizando they/them na versão original e e ambos ele/dele e ela/dela na tradução em português, indiferente da aparência feminina ou masculina.

Infelizmente há pessoas que não apoiam essa representividade, já recebi comentários e feedbacks odiosos somente por ter pronomes neutros. Meus jogos não são para esse público. São jogos feitos por uma pessoa queer, para pessoas queer. Sempre foram, sempre serão.

Quais conselhos você daria a outros desenvolvedores independentes que desejam criar jogos em um curto período e os desafios de ser uma pessoa desenvolvedora no Brasil?

Vai com calma, pense bem no escopo do projeto, e se você é líder de uma equipe, lembre que o trabalho não vai ser só encontrar um pessoal para trabalhar junto, mas também se comunicar, resolver eventuais problemas, ir atrás do que está faltando…

Tenha em mente seus limites. Não faça como eu. Embora Hydrangea tenha sido um sucesso e tudo tenha dado certo no final, não era para eu ter feito tudo que eu fiz sozinha. Eu deveria ter aceitado que precisava de ajuda, e que está tudo bem. As vezes, sinto que devs solo (ou que anteriormente eram solo e hoje estão entrando em projetos em equipe) tem uma certa resistência a aceitar isso.

Nós, devs, não somos máquinas. A cultura crunch já existe e arruína vidas e carreiras no mundo profissional de games, então penso que como independentes, nós podemos e devemos lutar contra isso. Embora game jams sejam divertidas e uma ótima forma de entrar na comunidade e fazer networking, nossa saúde mental e bem-estar deve estar em primeiro lugar.

Sobre ser dev indie Brasileira, há todas aquelas questões de dificuldade de entrar no mercado, falta de visibilidade, e pouquíssimo investimento.  Gostaria de ressaltar também o fator do gênero. A cena dev consiste majoritariamente em homens cis, e eu encontro uma boa dificuldade em participar da comunidade e encontrar pessoas como eu – mulher queer – que tenham tido tanto sucesso quanto devs masculinos.

O apoio de dev para dev é essencial. No final das contas, somos todos Brasileiros, lutando contra fatores políticos e econômicos fora de nosso controle, que dificultam a criação dos nossos jogos e a visibilidade deles. Apoie seus colegas, e eles te apoiarão. Joguinhos Brasileiros, gostoso demais!