Já cobrimos dois tipos de abusos muito comuns, ambos bem nocivos tanto para a sociedade quanto para o indivíduo. A injustiça social e o abuso produzido com o silenciar de vozes.

Vamos começar com nosso personagem da terceira parte…


Antes de começar dois avisos

1: Essas entrevistas são relatos de pessoas reais. Embora não sejam uma pesquisa empírica, são experiências e dificuldades reais que as pessoas vivem. Por favor, não desvalidem elas e tenham respeito.

2: Essa matéria terá SPOILERS vitais da narrativa do jogo. É uma reflexão direcionada para pessoas que já jogaram, que não se importam com spoiler ou que não pretendem jogar o jogo. Não precisa de ter jogado para conseguir seguir o raciocínio.

MANIFESTO 3— ABUSO DA GRATIDÃO

Yusuke Kitagawa — Abuso: Gratidão

Fonte: Atlus

Yusuke sempre foi um menino peculiar. Não podia ser diferente, cresceu órfão e foi criado por um dos mestres da arte japonesa, Madarame.

Quando ele ainda era pequeno sua mãe morreu. Ninguém sabia quem era o pai, mas a ausência desse já não é incomum e infelizmente já é normalizada socialmente.

Madarame, que era professor de sua mãe, sentiu pena e criou o menino no mundo da arte. Assim como sua mãe, Yusuke era um exímio pintor que dedicava sua vida a retratar a beleza do mundo. Mesmo rico e famoso, Madarame vivia em um casebre onde ensinava vários pupilos no mundo da arte.

Tudo parece lindo e altruísta, não é??! Da maneira que Madarame queria, a imagem de artista virtuoso, humilde e caridoso era uma ótima narrativa para a mídia e os negócios.

Madarame na verdade não passava de um artista mediano que sugava o talento de seus pupilos e os vendia como se fosse seu.

Sempre foi um enigma para a mídia como ele conseguia pintar com tantos estilos diferentes. Os estilos nunca foram dele e pelo seu status se o pupilo se voltasse contra ele, Madarame acabava com o nome desse pupilo e qualquer prospectiva no mundo artístico.

Yusuke sempre soube disso, mas o amor e gratidão por seu captor o faziam refém de uma situação de abuso. Ele sentia necessidade de dar tudo de si para agradar aquele que segundo ele, o deu tudo.

Um dia os Phantom Thieves fizeram Yusuke encarar a realidade de que o seu guardião na verdade era seu captor, seu carcereiro e possivelmente um dia seria seu executor.

Madarame mentia sobre tudo. Ele não vivia em um casebre, tinha uma mansão no nome de uma amante. Explorava seus pupilos pois só ele devia brilhar e obter resultados. Todos descartáveis.

Por último, Yusuke descobriu que o quadro famoso de Madarame era na verdade de sua mãe e seu acolhimento foi um plano elaborado para sair impune no crime. Como se não fosse o suficiente, Madarame também tinha observado a mãe de Yusuke colapsar e não a prestou ajuda na hora de sua morte.

Nesse momento Yusuke abriu seus olhos e acordou para seu espírito de rebeldia diante do abuso orquestrado nele no qual ele mesmo tinha participado.

Pergunta

Você já sentiu o abuso da gratidão? De você ser tão grato e admirar alguém tanto que você permitiu a pessoa te usar e aceitava isso porque “a pessoa fez tanto por você”. Abriu mão de coisas que eram suas para exaltar ou agradar essa pessoa? E ainda justificava essa ação?

Relato 1

Sim, já fiz muito isso, por uma amigo.

Eu achava que era amiga, porém não era. Fato em si é que eu achava que devia muito ela pela amizade, tanto que não poderia me impor e sempre estava a sombra dela, pois no passado ela era minha única amiga. eu abri mão de ser eu mesmo, eu era uma cópia extra, que não tinha muita personalidade e quando esquecia isso e era eu mesmo, achava que estava sendo ingrato.

Relato 2

Sim, já senti o abuso da gratidão. Tipo, você se sente grato à pessoa por ela ter feito x coisa e acaba se sentindo culpado por isso, é compelido a fazer favores ou “dever” algo a ela. E claro, sempre fica aquele sentimento “pô, fulano fez tanto por mim, é o mínimo que eu posso fazer por ele” quando, na verdade, você não deve nada àquela pessoa. Já aconteceu tanto da pessoa de fato jogar na minha cara “ah mas eu fiz isso por vc”, quanto também aquele sentimento de dever não exatamente dito, mas que você sente que tem e a pessoa pensa a mesma coisa…

Relato 3

Sim, já senti o abuso da gratidão. Fui tão grata a pessoa que deixei que ela abusasse de mim e me trouxesse diversos traumas, fui grata por essa pessoa ter me dado a vida. E esqueci de tudo de ruim que me veio com isso.

Relato 4

Sim, nesse relacionamento tiveram vários momentos assim. Em uma situação ou outra com amigos e familiares. Teve muito a ver com dinheiro, pelo fato de ele ter uma condição financeira melhor, mas ele fazia questão de me “cobrar” por qualquer coisa que ele fizesse.
Sempre que ele fazia o que eu queria, aquilo era motivo pra eu ter que me sentir grato e ter que ceder pra tudo que ele queria.

Ao acordar para seu espírito de rebeldia, Yusuke conseguiu pela primeira vez ver quem seu mestre realmente era. Ele sentia repulsa de si, de ter rejeitado encarar a realidade todos esses anos. Uma imitação deplorável realmente.

Para Madarame arte era apenas uma ferramenta a ser usada para alcançar um objetivo, mas Yusuke não se importava mais com a visão obtusa de seu ex-mestre sobre algo transcendental como a arte.

Yusuke não estava mais cego pela gratidão que o prendia no chão. Gratidão é algo que damos de graça em respeito. Ela é feita em virtude de uma ação feita para levantarmos em voo de ascensão e jamais nos prender em cobrança.

Como o próprio persona de Yusuke falou, “O mundo está cheio de belezas e vícios, está na hora de você ensinar para os outros qual é qual!”. Yusuke fez isso e como fez.

Segue vídeo do despertar de Yusuke:

Recapitulando…

Falar sobre isso não é fácil, é doloroso, abre feridas mas também é necessário.

A única maneira de resolvermos um problema é encarando ele de frente, com seu medo mas também com a sua coragem. Quando fingimos que um problema não existe, ele nos consome.

Persona nos obriga a encarar características e dores do humano e da sociedade que tentamos ignorar.

Com isso passamos pelo abuso da injustiça social, silêncio e gratidão.

Embora gratidão seja uma das qualidades mais bonitas e a ingratidão um dos defeitos mais feios, a gratidão pode ser um abuso. Uma vez que ela é usada para fazer cobranças naquele que era tão grato, essa pessoa vira refém. Socialmente a ingratidão é horrorosa e ninguém cogita em se tornar ingrato, esse abuso se aproveita disso para controlar a pessoa a fazer coisas que ela não gostaria, coisas que às vezes podem mudar a vida do outro permanentemente.

Ajudar o próximo é ótimo, transformar algo tão digno em algo que tem que ser pago é deplorável. Amor é de graça.

MANIFESTO 4— ABUSO DA EXPECTATIVA

Makoto Niijima –Abuso: Expectativa

Fonte: Atlus

Makoto aparentemente não sofreu nenhum abuso. Ela era a presidente do conselho estudantil, melhor aluna do colégio, bonita, admirada, cobiçada por muitas faculdades. Uma vida rumo ao sucesso que alguns conseguem apenas sonhar, certo?

Tem um grande problema, Makoto não sabe quem ela é, quem ela quer ser e muito menos tem permissão de querer. Ela viveu sua vida cumprindo expectativas dos outros sobre como ela deveria ser e como deveria se portar.

Sua irmã trabalhava duro para conseguir dá-lá essas chances e vivia declarando o quão difícil é para uma mulher obter sucesso naquela sociedade.

Poderíamos dizer que Makoto sofreu abuso do silêncio, pois ela se calou diante da imposição feita contra a sua vontade. Também poderíamos dizer que Makoto sofreu abuso da Gratidão, pois sua irmã a obrigava a trilhar um caminho pelos sacrifícios que ela fazia.

Mas dentro de si, Makoto apenas sentia que precisava fazer o que esperavam dela, ser a senhora perfeição. Suprir as expectativas de sua irmã, do diretor e professores da escola, de seus colegas e da sociedade em geral.

Foi contra tudo que acreditava e ganhou rótulos como “queridinha do professor”, “pequena senhora perfeição”. Investigou seus colegas a mando do corpo docente da escola.

Por isso Makoto estava sempre sozinha e ao mesmo tempo sempre acompanhada do peso de quem deveria ser. Seus pensamentos e personalidade não eram seus, pois ela sempre fazia o que lhe mandavam.

Até o dia que se meteu em uma confusão por fazer o que queriam. Sua investigação a levou a um membro da máfia japonesa, esse que a viu como submissa e complacente.

PERGUNTA

Já sofreu abuso da expectativa?

No caso você queria agradar e cumprir as expectativas que as pessoas tinham de você e com isso fez o que os outros esperavam e viveu sua vida na vontade dos outros. Pois a sociedade espera que você faça um papel e você tem que fazê-lo.

Relato 1

Acho que isso é quase um dos gatilhos da (minha) ansiedade. Pessoas sempre vão esperar algo de você, sempre vão esperar que você faça algo brilhante, ser “alguém na vida”. Eu sempre vi que meus pais exigiam que eu fosse “alguém na vida” e muito tempo eu fiquei me perguntando o que seria “alguém na vida” e eu percebi que pelo meu ciclo social e incluindo meus pais, eu tinha a visão de que ser “alguém na vida” era alguém que tivesse muito dinheiro. Sofri e ainda sofro muito por isso, mas a escolha que eu fiz pra mim é que eu já sou “alguém na vida” e pra mim isto é apenas respirar e seguir um dia de cada vez, isso pra mim de longe já é uma vitória.

Relato 2

Sim, já quase fiz a tal cirurgia bariátrica por querer cumprir as expectativas das pessoas ao meu redor. Só não fiz, porque a psiquiatra vetou.

Relato 3

Minha tatuagem tem relação com isso.
Primeiro em relação a minha história familiar onde eu me sentia como filho indesejado.
Depois por causa da minha sexualidade.
Eu fui quem eu não era durante muito tempo pra “orgulhar” minha mãe.
Depois em um relacionamento tóxico. Onde eu realmente deixei de ser quem eu era pra poder estar com o cara.

Com a ajuda dos Phantom Thieves, Makoto percebeu que realmente ela nunca tinha usado sua voz, mas diferente de Ann que tinha se silenciando, as vozes que saíam da boca de Makoto eram as vozes de outras pessoas.

Makoto percebendo isso cansou de usar vozes emprestadas e usou a sua. E acordou ao seu espírito de rebeldia mandando um CALA A BOCA.

Makoto gastará agora seu tempo descobrindo quem ela é e do que ela gosta, com seus próprios pensamentos e personalidade. Ao acordar Makoto ou “Queen” como ela viria a ser conhecida, quebrou o chão enquanto andava.

A lição que sua persona a deu ao acordar, pode ser aplicada a qualquer pessoa lendo esse relato: “você finalmente encontrou a sua própria justiça, por favor nunca perca vista dela de novo”.

Quando se gasta tanto tempo reproduzindo vozes dos outros, quem estará lá para emitir a sua voz? Segue o vídeo do momento que o espirito de rebeldia de Makoto acordou:

Recapitulando…

Voltamos a série que me aventurei sobre abuso psicológico retratado dentro de videogames, no caso como exemplo usamos o jogo Persona 5. Depois de passarmos pelo abuso da injustiça social, silêncio e gratidão, no último capítulo dissertamos o abuso da expectativa.

Demora tanto tempo para uma pessoa se encontrar, descobrir o que quer e experimentar. Ter alguém que te guie pode ser tanto uma benção quanto uma maldição. Às vezes vivemos na sombra da expectativa de ser o que outra pessoa quer.

Nunca se encontrando, nunca conseguindo estar no sol e distinguir o som da própria voz no meio de tantas vozes que esperam tanto de nós. Dessa forma nos tornamos o reflexo de quem as pessoas esperam se sejamos. Mas isso é uma ideologia de outro e não uma voz original.

Seja você mesmo e passe direto pelo ruído dessas vozes. Pois não saber quem é um abuso diretamente a sua identidade, a sua alma.


Link para a parte 1 e parte 3