É comum pensar em seres poderosos que emanam raios cósmicos pelos olhos quando falamos sobre histórias em quadrinhos. Porém, a nona arte possui uma bagagem de histórias além do panteão moderno de deuses encapuzados — e também seres com nomes de insetos e animais. Temas como a legalização da cannabis, o holocausto, HIV, corrupção, biografias pesadas, entre outros, existem aos montes — mesmo que para um público nichado. Obras que transformam narrativas sérias em conteúdos de fácil compreensão sem perder nada dos fatos. As histórias em quadrinhos vão além dos super-heróis. Hoje falarei de apenas três, que serviram como base para momentos cruciais da minha vida pessoal e como leitor.
Obras que tive o prazer de conhecer: “Maus” de Art Spiegelman
Aos 13 anos de idade, conheci uma obra que iria mudar o meu conceito sobre quadrinhos. Escrita e desenhada por Art Spiegelman, “Maus” de 1980, foi o meu percursor de leituras mais sérias enquanto leitor de gibis. Na obra, acompanhamos o autor tendo uma longa conversa com seus pai Vladek, um judeu polonês e sobrevivente do holocausto.
Durante as quase 300 páginas, somos imersos em uma odisseia melancólica presente nas memórias de Vladek, desde o “mundo” comum até a invasão das tropas nazistas na Polônia. É interessante como Art resolve retratar as culturas e pessoas da época. Para os judeus, cria-se o estereótipo de “rato” como era descrita a população na propaganda nazista disseminada em massa na época. Os norte-americanos são cães, os alemães gatos e poloneses são porcos. Não quero falar mais sobre essa questão porque estragaria a experiência de leitura.
Porém, tudo que Art escolhe para incrementar a narrativa é sensacional. Uma mistura de biografia, autobiografia, documentário, entre outros gêneros que auxiliam o autor a mostrar o quão apavorante foram os dias do seu pai em campos de concentração. Maus é uma obra completa, ganhadora do Pulitzer e extremamente sensível. Vale a leitura para quem ama conhecer sobre história a partir de uma perspectiva única: de quem a viveu de perto.
“Não era você que eu esperava” de Fabien Toulmé
A chegada de um bebê é regada por uma constante ansiedade. Em “Não era Você que eu Esperava” de 2014, do quadrinista francês Fabien Toulmé – metade brasileiro por amor -, é uma obra tocante. Nela, acompanhamos a vida da Fabien após o anúncio que sua esposa Patrícia, em sua segunda gravidez. No entanto, nem tudo são mares e flores na chegada do bebê, como pensara Fabien. Descobrimos cedo que o protagonista do quadrinho – e também autor, uma vez que a obra é autobiográfica – carrega um senso comum referido a pessoas com Síndrome de Down.
A síndrome é uma condição genética causada pela presença de 3 cromossomos 21 nas células da criança/adulto ao invés de 2. Indo da sua infância até a vida adulta, Fabien é preconceituoso e, em alguns momentos, cruel. Porém, o que ele esperava – daí o nome da obra – é que sua filha seria uma dessas pessoas. Após o choque e a constante negação de Fabien, acompanhamos uma aula de como é apresentar as dificuldades – sem romantização – que pessoas com Síndrome de Down possuem.
É interessante acompanhar a quebra de expectativa, a negação e o aprendizado ao final do quadrinhos, mostrando para Fabien o quão errado ele estava. A escolha por contar as fases da sua vida “por paletas de cores” elucida bem sobre o sentimento do autor em determinados momentos. É uma obra incrível, e que deveria estar em nosso meio mais do já está — em currículos escolares principalmente.
“Retalhos” de Craig Thompson
Desses três títulos apresentados até agora, “Retalhos” de 2009, do célebre – momento tietagem – Craig Thompson é uma das obras mais pesadas que já li. O quadrinho é autobiográfico, e conta desde o primeiro amor do autor, aos abusos na infância, a vida em uma família religiosa fervorosa, as dificuldades da adolescência, entre outros temas essencialmente delicados.
O que faz com que essa obra esteja na minha lista de preferidos é como Craig conta sua própria história. A narrativa é uma aula de como se contar memórias dentro de páginas. É forte, tenso, afável e principalmente, verdadeiro. Existem momentos que duvidei se o que lia era uma parte da minha vida ou do autor, pela constante clareza dos detalhes. São quase 600 páginas, um verdadeiro calhamaço.
No entanto, uma história que mostra verdadeiramente como a obsessão dos pais pela religião atinge jovens em processo de amadurecimento é quase um estudo sobre o desenvolvimento infantil. Fora que, esses momentos deixam cicatrizes e elas infligem as pessoas que viveram isso momentos tenebrosos e solitários. O Deus da benevolência e do altruísmo torna-se o algoz da auto censura. Entretanto, Craig tira o belo dessa situação e produz – trazendo da sua memória – momentos interessantes na auto construção dele como devoto. A arte, em preto e branco, é o chamariz para a história. Extremamente bem feita e imersiva, tornando as passagens mais pesadas em algo que possamos digerir sem nos desconectarmos do quadrinho.
Até a próxima
Escrever sobre obras que mudaram minha forma de ver o mundo é sempre algo pessoal e, acima de tudo, algo necessário para a minha formação. Acredito que revisitando essas obras, também revisto minhas memórias e minhas próprias nostalgias. Dessa forma, entendo como os quadrinhos vão além de super-heróis e, principalmente, como eles me ajudaram a chegar até aqui. Até a semana que vem com mais três obras. Obrigada pelos peixes!