A literatura nacional, especialmente as obras de autores independentes, é um dos pilares do nosso trabalho. Recentemente, tivemos o prazer de conversar com Wilson Júnior, autor de “Fios de Ferro e Sal: Trama Ancestral“. No bate-papo, entendemos um pouco mais sobre sua trajetória e debatemos o cenário literário no Brasil. Confira a entrevista completa.
Confira a entrevista com Wilson Júnior.
O que te motivou a ser escritor?
Sempre fui apaixonado por leitura. Quando estava prestes a me formar na faculdade, me sentia um pouco perdido sobre o que faria da vida. Foi então que participei de uma palestra do autor Leonel Caldela, na Bienal do Ceará em 2014. A partir dali, a ideia de ser escritor entrou na minha cabeça e nunca mais saiu.
Como você enxerga o cenário literário no Brasil?
A literatura vive um momento complexo, não só no Brasil, mas no mundo todo. Competir com outras formas de entretenimento nunca foi tão difícil, já que as redes sociais são projetadas para serem viciantes. Nunca se leu tanto, mas muito pouco disso é literatura. O Brasil perdeu leitores, segundo pesquisas recentes, e o mercado editorial enfrenta uma crise. Por outro lado, as redes sociais aproximam autores e leitores, e o mercado independente está fortalecido. De certa forma, a escrita tem se tornado mais democrática, permitindo que vozes diversas sejam ouvidas.
Como surgiu a ideia para “Fios de Ferro e Sal: Trama Ancestral”?
Quando terminei “Trama Ancestral“, a ideia de “Fios de Ferro e Sal” já estava forte na minha cabeça. Queria voltar ao cenário do primeiro livro, mas trazendo-o mais para perto da minha terra, o Ceará. Quis destacar o papel dos jangadeiros e pescadores na luta antiescravagista e também explorar melhor os Orixás, que são parte fundamental da cultura afro-brasileira e que, no primeiro livro, não tive tanta oportunidade de desenvolver.
Como foi o processo de pesquisa histórica e cultural para construir esse universo?
Como a base de pesquisa já havia sido feita em “Trama Ancestral“, esse processo foi mais fácil, e até mais divertido. Há, nesta obra, uma brincadeira com memórias (sem spoilers!), que me permitiu viajar no tempo e no espaço, explorando elementos que fogem do universo tradicional dos personagens. Ao mesmo tempo, mergulhar na historiografia brasileira do período colonial e imperial é sempre doloroso, pois trata-se de uma viagem pelo genocídio e apagamento de culturas e pessoas. Minha formação em História facilita esse processo, que considero a parte mais complicada da escrita.
O contexto social da obra
A fantasia geralmente é dominada por mitologias eurocêntricas. Como foi inserir os Orixás e figuras da religiosidade afro-brasileira nesse gênero?
Costumo dizer que minha literatura é minha forma de fazer política. Ser uma pessoa negra em um país racista me impede de viver uma vida despolitizada. Essa luta está conectada ao pensamento decolonial, que busca romper com a identidade hegemônica que domina nossa cultura. É fundamental que as novas gerações se reconheçam também nas histórias fantásticas. Ver uma entidade poderosa com a mesma cor de pele e cabelo pode mudar a forma como uma criança negra se percebe no mundo, especialmente em uma sociedade que constantemente associa sua imagem à servidão. Espero que mais autores abordem esses temas, a ponto de, um dia, podermos reclamar de como esses elementos se tornaram clichês.
Você sente que os leitores estão mais abertos a narrativas que rompem com o eurocentrismo?
Honestamente, não. Um tipo específico de leitor, que já está mais conectado a essas pautas, valoriza muito essas obras justamente pela dificuldade de encontrá-las. Mas o leitor médio raramente sai da zona de conforto ou reflete sobre quem está lendo. Isso não é culpa individual, é o resultado de muito investimento em “soft power”, no qual países estrangeiros promovem sua cultura a ponto de gerar em outros povos a síndrome de vira-lata. Obras estrangeiras são vistas como mais interessantes. Houve avanços, mas ainda estamos longe do ideal.
Como foi o processo de criação das entidades?
Sempre que trabalho com entidades ligadas à religiosidade de outras pessoas, procuro agir com o máximo de respeito. Gosto de deixar claro que se trata da minha interpretação dessas figuras. Em “Fios de Ferro e Sal”, a entidade que mais me exigiu cuidado foi Iemanjá, tanto pela importância na trama quanto na religiosidade afro-brasileira. Pedi a consultoria de um amigo adepto de uma religião de matriz africana, que me deu ótimas sugestões. Embora eu entenda que algumas pessoas não gostem de ver figuras religiosas em narrativas ficcionais, acredito que essas representações ajudam a ressignificá-las. Por conta do colonialismo e da cristianização, essas entidades foram demonizadas, e mesmo sendo ficção, acho que a literatura pode ajudar a combater preconceitos.
Qual é o papel da ficção na construção de uma narrativa mais inclusiva e descolonizada?
A maioria das pessoas tem um alcance empático pequeno. Elas podem se sensibilizar, mas só com o que está próximo. Aprendemos, com o tempo, a desviar o olhar. A literatura pode ser uma ponte poderosa: ela nos coloca no lugar do outro. Conhecemos sua história, sua dor, seus medos. Mesmo sendo ficção, muitas vezes criamos laços mais fortes com personagens do que com pessoas reais. A ficção permite esse exercício de alteridade, e isso é uma ferramenta poderosa para transformar mentalidades.
Os conselhos do autor
Qual mensagem você espera deixar nos leitores?
Vivemos em um sistema construído para nos oprimir, no qual poucos lucram com o sofrimento de muitos. As mudanças só acontecem por meio da luta coletiva. Não adianta esperar por heróis ou milagres. Essas figuras nos levam até certo ponto, mas para que a ruptura se transforme em mudança real, precisamos modificar a nós mesmos.
Qual conselho você daria a um autor iniciante?
Paciência e estudo. Literatura exige tempo, tanto para escrever quanto para aprender. Não tenha pressa em publicar. Busque coletivos, conheça a cena literária da sua cidade e estado. Leia muito. Participe de leituras beta — isso ajuda a reconhecer seus próprios erros em textos alheios. Cursos são importantes, mas nenhum professor ensina mais que a própria literatura.
Há algo mais que gostaria de compartilhar?
Espero que minhas palavras encorajem as pessoas a conhecer meu trabalho. Se você é um aspirante a escritor, pode me mandar uma mensagem nas redes sociais que terei prazer em enviar materiais para te ajudar a começar. E, por favor, deem mais crédito, espaço e oportunidade para a literatura brasileira contemporânea. Temos uma das melhores literaturas do mundo, e é doloroso vê-la ignorada no próprio país.
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