A Marvel e a sociedade

Há mais de uma década a Marvel tem lotado sala de cinemas, batendo recordes atrás de recordes de bilheteria com o que viria a ser conhecido por todos como Marvel Cinematic Universe, ou MCU para os íntimos da cultura nerd.

Nossa vida desde então tem mudado, ao menos no ponto de como experimentamos entretenimento. Universos integrados têm se tornado cada vez mais comuns no cinema e o roteiro conhecido como “receita de bolo” se repete e repete e… repete.

Fonte: Marvel/Disney

O que mudou em nosso contexto social? Nosso paradigma mudou decorrente de um universo fictício? Para essa resposta, acredito ser mais provável que eles tenham se regulado mutuamente.

Embora entretenimento faça parte da construção da sociedade e do indivíduo que nela habita, apenas um único elemento seria ínfimo para mudar ela por completo. Pode ter alterado a visão de um certo grupo, no caso os nerds, mas a sociedade como um todo seria altamente duvidável.

Cinema é uma expressão cultural, por isso guia e é guiada por nossa construção social que dita o que é moralmente aceito, considerado normal, entretenimento, como nos reconhecemos na sociedade. Representando e moldando a maneira que vemos o mundo.

Para ser sucinto e não me alongar, darei um exemplo. Capitão América era um estadunidense que usava as cores, ideologias e as estruturas de certo e errado americanas para ensinar para as crianças sobre patriotismo, democracia, liberdade, liberalismo, em resumo o modo de vida americano, o qual era sempre visto como “o mocinho”. Ao mesmo tempo que o vilão usava vermelho e sempre tinha objetivos nefastos, uma referência a como o americano queria que os membros do eixo da segunda guerra e posteriormente URSS fossem percebidos. 

Fonte: Marvel

Esse exemplo foi usado em algo inegável, mas isso se aplica em tudo na sociedade, no como vemos: mulheres, crimes, alimentos, trabalho, família, amigos, minorias e outros. Todas construções sociais são representadas e influenciadas pela arte. Isso nos traz de novo ao MCU.

O paradigma social atual está em uma mudança demasiada rápida e isso cria conflitos, pois a tecnologia e arte como guias e influenciadores costumam mudar de paradigma mais rápido do que a população e sempre existe a parte da população que resiste a essa mudança, que chamamos pensamento conservador.

A inclusão social no cinema

Com grandes empresas, veículos de mídias, artistas e instituições governamentais mudando gradualmente o paradigma, criou-se um movimento chamado “quem lacra não lucra” do antigo paradigma. Isso leva pessoas a hostilizarem as políticas adotadas no MCU e pela Disney.

Atos como a produção de filmes inclusivos e de protagonismo de minorias tem sido bastante criticados por fãs mais conservadores. Não só isso, mas reboots de franquias para se adequar a realidade de novas gerações, também sofrem críticas constantes. Isso criou uma polarização conservadora e progressista dentro do universo da MCU. Vulgarmente conhecemos como os fãs raiz e os fãs Nutella. Memes, críticas e linchamentos virtuais são atividades diárias entre esses dois grupos. Se tal fenômeno acontece por consequência da conjuntura social atual ou se é um caso específico isolado é algo ainda a ser analisado.

Fonte: Marvel/Disney

Outra mudança menos contestada está na criação do termo “universo”. Filmes cada vez mais adotam uma postura de continuação e de sequências de filmes, que às vezes são relacionados ou e às vezes não, porém acontecem no mesmo universo. Filmes de terror como Invocação do Mal adotaram a mesma proposta e essa tendência se espalha cada vez mais.

Indagada como postura mercenária por uns ou venda casada por outros, não existe dúvidas que esse formato de histórias entrelaçadas a outras é uma característica de séries televisivas. Nas últimas décadas, as séries têm ganhado um lugar de destaque na vida dos cidadãos, porém, as séries não vendem um episódio único e cobram novamente por outro, algo feito por essa nova característica episódica do cinema.

Veio a existir uma integração entre todas as mídias, HQ, jogos, decoração, alimentação, eventos, livros, redes sociais e muitos outros. Essa tacada de mestre fez com que fosse possível o fã se sentir um participante ativo de todo o processo. Dentro disso talvez esteja a resposta para o sucesso da Marvel, mas veremos isso mais em frente.

O problema da Marvel com a indústria e cinema

Saído do público e sociedade e olhando mais a indústria, talvez David Griffith e Charles Chaplin não concordassem com o rumo que o cinema vem tomando. Embora seja comum para Hollywood usar e reusar a narrativa do monomito ou “jornada do herói”. Os filmes de super-herói as padronizaram e automatizaram, criando uma “receita de bolo” no qual um filme não precisa ser assistido para prever o plot ou desenvolvimento completo do longa.

De maneira rápida o Monomito é uma estrutura narrativa descrita por Joseph Campbell. Ele identificou que em toda história humana, tribos, sociedades e pessoas ao redor do mundo, sem contato uma com a outra, tinham uma maneira parecida de narrativa para contar suas histórias, mantendo o interesse do ouvinte. Jesus, Buda, Odisseia, Senhor Dos Anéis, Harry Potter, Star Wars e muitos outros, todos usam da jornada do herói. Resumidamente são 12 passos, que pode ter menos ou mais passou e pode ter alterações neles, mas uma estrutura sempre é mantida.

A reprodução constante da mesma estrutura narrativa calculada e automatizada criou um impedimento criativo no roteiro e a questão: “O cinema deixou de ser uma arte audiovisual narrativa criativa que se desenvolve e evolui, para se tornar um produto atado de inovação narrativa sacrificado para servir apenas a indústria e ao lucro? Será que o roteiro está sendo sacrificado por efeitos especiais?”

Qual foi a última vez que você foi em uma sala de cinema da Marvel sem saber como ia começar, como ia se desenvolver e como ia se concluir?

Deixo vocês com uma partes da matéria que o diretor premiado Martin Scorsese prestou ao New York Times: 

Para mim, para os cineastas que passei a amar e respeitar, para os meus amigos que começaram a fazer filmes mais ou menos na mesma época que eu, o cinema era sobre revelação – revelação estética, emocional e espiritual. Era sobre personagens – a complexidade das pessoas e suas naturezas contraditórias e às vezes paradoxais, a maneira como elas podem se machucar e amar e de repente ficar cara a cara com elas mesmas.

Tratava-se de confrontar o inesperado na tela e na vida que dramatizava e interpretava, e ampliar o sentido do que era possível na forma de arte.

E essa era a chave para nós: era uma forma de arte. Havia algum debate sobre isso na época, então defendíamos o cinema como um igual à literatura, música ou dança. E entendemos que a arte pode ser encontrada em muitos lugares diferentes e em tantas formas – em “The Steel Helmet” de Sam Fuller e “Persona” de Ingmar Bergman, em “It’s Always Fair Weather” de Gene Kelly e Stanley Donen e “Scorpio Rising” de Kenneth Anger, em “Vivre Sa Vie” de Jean-Luc Godard e “The Killers” de Don Siegel.

Muitos dos elementos que definem o cinema como eu o conheço estão nos filmes da Marvel. O que não existe é revelação, mistério ou perigo emocional genuíno. Nada está em risco. Os filmes são feitos para atender a um conjunto específico de demandas e são projetados como variações sobre um número finito de temas.

Eles são sequências no nome, mas são remakes em espírito, e tudo neles é oficialmente sancionado porque realmente não pode ser de outra maneira. Essa é a natureza das franquias de filmes modernos: pesquisadas no mercado, testadas pelo público, examinadas, modificadas, revisadas e remodeladas até que estejam prontas para o consumo.

Outra maneira de colocar isso seria que eles são tudo o que os filmes de Paul Thomas Anderson ou Claire Denis ou Spike Lee ou Ari Aster ou Kathryn Bigelow ou Wes Anderson não são. Quando eu assisto a um filme de qualquer um desses cineastas, sei que vou ver algo absolutamente novo e ser levado a áreas de experiência inesperadas e talvez até inomináveis. Meu senso do que é possível contar histórias com imagens e sons em movimento será expandido.

A situação, infelizmente, é que agora temos dois campos separados: há entretenimento audiovisual global e há cinema. Eles ainda se sobrepõem de vez em quando, mas isso está se tornando cada vez mais raro. E temo que o domínio financeiro de um esteja sendo usado para marginalizar e até menosprezar a existência do outro.

Para quem sonha em fazer cinema ou está apenas começando, a situação neste momento é brutal e inóspita para a arte. E o ato de simplesmente escrever essas palavras me enche de uma tristeza terrível.

Fonte: New York Times , Infoescola e CAMPBELL, Joseph. O herói de mil facesSuperheroes and Society: Tracing the socio-cultural trajectory ofAmerican mainstream superheroes

A representatividade por meio de personagens

Desde o lançamento de seu primeiro filme, o longa Homem de Ferro, o MCU vem deixando a sua marca na indústria cinematográfica. As produções encabeçadas pelo estúdio norte-americano, além de figurarem entre as mais vistas de todos os tempos, conciliam questões que, nas primeiras décadas dos anos 2000, não eram pautadas nas filmografias norteadas pelas narrativas de super-heróis.

Pantera Negra é um exemplo disso. Lançado em 2018, a trama estrelada por Chadwick Boseman, traz a história de T’Challa, príncipe do Reino de Wakanda. Para além do roteiro, cenários, efeitos especiais e figurinos, o filme evoca um protagonista até então inédito no leque de filmes da Marvel: um super-herói negro. Desse modo, embora tardiamente, Pantera Negra abriu espaço para uma geração de heróis que, mais que seres com características notáveis, carregam representatividade em suas falas e modos de agir.

Pantera Negra foi o primeiro super-herói negro a estrear um filme da Marvel, 25 anos após a fundação do Marvel Studios. 5 anos antes, o MCU lançava o seu primeiro filme, Homem de Ferro.
Reprodução: Replicario

Seguindo o caminho de T’Challa, o personagem de Sam Wilson é o próximo que promete deixar a sua marca no universo das adaptações dos quadrinhos. Interpretado por Anthony Mackie, Wilson será o novo Capitão América, posto ocupado anteriormente por Steve Rogers (Chris Evans).

Falando em Capitão, aliás, quem não se lembra da atriz Brie Larson sob o papel de Carol Danvers, a Capitã Marvel? Ela, em companhia de Wanda (Elizabeth Olsen) e, especialmente de Natasha Romanoff, a Viúva Negra (Scarlett Johansson), ressaltou o poder feminino ainda tão estereotipado neste tipo de produção.

Personagens como Natasha Romanoff, Carol Danvers e Wanda ressaltam a importância da representatividade feminina no cinema. Reprodução: Wipy.tv

Não bastando, a representação feminina abriu espaço para a consagração de novas diretoras, como Chloé Zhao. A chinesa, que recentemente foi premiada com o Oscar de Melhor Direção do Ano por seu trabalho em Nomadland, está por trás das câmeras de Eternals, cujo lançamento está previsto para o final deste ano. Também em 2021, o público acompanhará a chegada de mais um protagonista que promete diversificar o elenco de super-heróis: Shang-Chi (Simu Liu). Primeiro personagem de origem asiática a ocupar o papel principal de uma produção da casa, ele poderá ser visto nas telas a partir de setembro, inaugurando, portanto, uma nova era de pluralidades no MCU.

Shang-Chi será o primeiro personagem de origem asiática a protagonizar uma produção da Marvel. Reprodução:
Legião dos Heróis

Matéria escrita por Henry Lorenzatto e Victoria Nogueira.