Em algum momento da nossa vida lidamos com a morte. Seja de uma pessoa querida, de um animal de estimação, amigo ou ídolo. “Parte da jornada é o fim”, como diria Tony Stark após salvar o universo. No entanto, nas páginas dos quadrinhos, a morte é algo mutável, e o luto de Peter Parker em “Homem Aranha Azul” é algo marcante.

Magias, realidades alternativas, poderes, retcons, entre outros meios. Sempre existe uma forma para voltar à vida, tornando o evento algo difícil de acontecer.  Pelo menos, é o que todos pensavam até julho de 1973. Nas páginas de Amazing Spider-Man 121, Gwen Stacy era jogada de uma ponte pelo Duende Verde. 

Em um gesto rápido, o Homem Aranha salta para salvá-la, mas não obtém sucesso. A personagem morre, assim como boa parte da inocência dos quadrinhos naquela época. O Homem Aranha não salvou o dia, mas quem mais sofreu foi Peter Parker — lidando pelo resto da sua vida com o luto. Como será que Peter conviveu com a dor? Como isso atingiu o amigão da vizinhança? É exatamente essas perguntas que “Homem Aranha: Azul” de Jeph Loeb e Tim Sale disserta — além de um profundo diálogo sobre luto e melancolia. 

A vida de Peter Parker anterior ao luto

Ainda no começo da HQ entendemos duas coisas importantes; Gwen Stacy está morta e Peter Parker está imerso em luto profundo — como se não fosse possível piorar, é dia dos namorados. Isso faz com que Peter encontre um modo para “falar” com Gwen. Assim, por meio de gravações em fitas cassetes, Peter começa a dialogar para sua falecida amada como anda a sua própria vida, com muita melancolia e saudade em cada fala. 

Parker encontra-se em negação, o primeiro estágio do luto. A saudade é algo absurda e leva Parker a exteriorizar de alguma forma o que ainda resta desse luto tardio. No entanto, é difícil entender – pelo menos no início – qual o real motivo das gravações. Ainda no começo, existe uma frase muito marcante e que boa parte do público que sofreu uma perda repentina – ou prevista – de alguma forma entende. 

Reprodução: Marvel Comics, Panini Brasil.
Reprodução: Marvel Comics, Panini Brasil.

Por mais que, no texto seguinte, Peter demonstre algo relacionado a aceitação – quinto e último estágio do luto – parece mais uma “mentira para si” do que uma real aceitação. A HQ é recheada de alusões à morte. Por exemplo, em sequência desse diálogo acima, temos o vislumbre do que parece ser o último confronto entre o Duende Verde e o Homem Aranha — na linha temporal do quadrinhos Gwen ainda estava viva. 

Entretanto, a morte do vilão é figurativa. A fim de que Peter utilize o momento e a amnésia de Osborn para enterrar o Duende — salvando Norman, mas enterrando seu alter-ego. Dessa forma, nosso protagonista passa a se aproximar de Harry Osborn, filho de Norman. Com isso, ele consegue ficar de olho no vilão que aparenta estar adormecido. É nesse momento que Peter conhece Gwen. 

Paixão à primeira vista

Reprodução: Marvel Comics, Panini Brasil.
Reprodução: Marvel Comics, Panini Brasil.

Olhares, suspiros e palpitações. Peter está apaixonado. No decorrer da história, acompanhamos suas memórias ficarem cada vez mais emotivas. Com isso, Parker começa a deslizar em relação a “aceitação” mostrada no início da HQ. Dessa forma, e por meio das divagações em suas gravações, somos fisgados pelo sentimento de saudade latente — vale lembrar que Gwen morreu em seus braços após quebrar o pescoço. Ao lembrar da primeira vez que trocaram olhares pode ter sido um gatilho.

Perdi uma prima para o câncer enquanto eu ainda era adolescente. Lembro-me com tristeza da vez que neguei visitar a casa da minha tia a pedido dela. Isso acaba comigo até hoje. Nos meses seguintes, ela viria a perder a luta contra a doença. Sei bem o poder de uma memória desse tipo. 

Tim Sale e Jeph Loeb, a melhor combinação

Antes de entrarmos novamente nas memórias de Peter, vale ressaltar o quanto Tim Sale é majestoso em sua arte. Enquanto Loeb traz uma trama recheada de melancolia, muito bem escrita e adulta, Sale homenageia John Romita Sr., um dos mais célebres – e mais referenciados além de Ditko – artistas que passaram pelo aranha. 

Reprodução: Marvel Comics, Panini Brasil.
Reprodução: Marvel Comics, Panini Brasil

Outro ponto, não quero focar na subtrama clássica que existe na história. Acredito que, para a questão do “luto” de Peter, seja descartável. Todavia, é algo bem construído e serve como base para entender o cotidiano do aranha na época. Mais para frente tenho um texto guardado sobre a depressão de um dos vilões mais fantásticos do aranha, Kraven, O Caçador. 

É interessante o modo pelo qual Peter refere-se a Gwen durante as gravações. Para ele, ela não morreu. Portanto, ele até se “defende” sobre os sentimentos que começou a ter por Mary Jane Watson, que acabara de voltar de uma viagem totalmente diferente e encantadora. Com isso, o coração de Parker divide-se em dois. De um lado, Gwen, do outro, Mary Jane. 

Sobre amor e sentimento no luto Peter Parker 

Durante a HQ, Peter faz alusões de um futuro que não existiu por conta do falecimento de Gwen. É importante lembrar que, por mais que existam estágios do luto e um acompanhamento psicológico para isso, a história não deixa claro em que momento os sentimentos de Peter estão. A todo momento nosso protagonista parece permear todos os estágios. É difícil até entender qual o tempo exato que Peter grava as memórias. Sendo o luto, para ele e também para a percepção dos leitos, algo atemporal.

Em sequência, Peter compara Tia May e Gwen, ambas no mesmo encalço de “mulheres fortes e independentes”. Acredito que nesse momento, nosso protagonista tenha entendido um pouco mais sobre o luto. Vale lembrar o quanto May Parker sofreu com a morte de seu marido, Benjamin Parker, o Tio Ben. Não somente ela, mas também Peter. Porém, ambos com sentimentos diferentes. May perdia o amor da sua vida, Peter, seu amado tio e sua presença paterna. Ele deve ter pensando no primeiro, sem dúvidas. 

Perdi um amigo em um acidente horrível. Em seu velório, sua namorada na época, gritava e jogava para fora o sentimento de toda a angústia que nela habitava. Ambos estavam brigados — se não me falha a memória. Naquele momento, aprendi muito sobre amor, saudade, luto e, principalmente, sobre o sentimento de impotência que a morte pode causar. Agora, entendo mais ainda esse momento no quadrinho. 

Reprodução: Marvel Comics, Panini Brasil.
Reprodução: Marvel Comics, Panini Brasil.

A forma que Peter encontrou para desabafar 

Há quem diga que precisamos “deixar a pessoa ir embora”. Porém, discordo em partes dessa afirmação. Acredito que possamos viver com a memória de nossos entes queridos, tornando-as um suspiro de saudade. Perdi dois tios no espaço de um mês. Irmãos da minha mãe. Minha avó, uma mulher que admiro muito, aguentou aquilo de uma forma admirável. Porém, entendo o quanto ela convive com a dor da saudade. Sempre que conversamos sobre meus tios, os olhos dela enchem de lágrimas e a fala pausada e melancólica fica aparente. 

Reprodução: Marvel Comics, Panini Brasil.
Reprodução: Marvel Comics, Panini Brasil.

A morte do Tio Ben foi o gatilho que levou Peter ao mundo do heroísmo. Todo mundo conhece a célebre frase “Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades”. O quadro que separei acima é poderoso, e representa bem o quanto essa frase acompanha o Homem Aranha. Ao mesmo tempo que somos levados a essa memória de Peter, identificamos o quanto a promessa que lutar para um mundo melhor mora junto ao luto do personagem para com seu tio. A máscara é literalmente uma máscara para lidar com o sentimento de Peter — o que não altera em nada sua personalidade. 

A decisão

Em seguida, Peter divaga sobre a “decisão” de escolher entre MJ e Gwen. Quem moraria em seu coração? Porém, ele mesmo responde; não cabe a mim. Não mandamos em nossos sentimentos, por mais que tentemos. Ele ainda comenta sobre como passaria a vida, mas novamente, essa resposta não caberia a ele. O destino é engraçado, ainda mais quando você é um super-herói com uma galera de vilões extensa. Qualquer pessoa que Peter passasse a amar estaria em perigo. Ele nunca havia pensado nisso até o momento em que Gwen Stacy é jogada do alto de uma ponte, quebrando o pescoço e morrendo seus braços. 

Seguindo a história, Peter comenta sobre o sonho que teve. Nele, Gwen estava viva, nos dias atuais em que ele faz a gravação, comentando o quanto isso é injusto. O quanto a vida é injusta. Para essa parte, utilizo a frase que Dona Jacira, poeta, filósofa e mãe do rapper Emicida, declama em “Crisântemo”; “…perder o pai na infância, não sentir saudade do que viveu, mas do que poderia ter vivido.” 

Isso é exatamente o que Peter sente.

O luto é algo importante

Peter reflete sobre o quanto ser o Homem Aranha atrapalhou sua vida, colocando em perigo seus entes queridos e ele mesmo. É interessante pensar que todos temos algo semelhante ao “Homem Aranha” nesse sentido — alguns mais que outros.  

Reprodução: Marvel Comics, Panini Brasil.
Reprodução: Marvel Comics, Panini Brasil.

Mais interessante ainda é pensar em como somos confrontados com o sentimento de impunidade diante da morte. Seja ela qual for. Em como o fim encadeia começos, reflexões e, principalmente, sentimentos. 

Reprodução: Marvel Comics, Panini Brasil.
Reprodução: Marvel Comics, Panini Brasil.

A vida é incrível. Saibamos encontrar um modo de vivê-la e seguir em frente, assim como Peter achou uma maneira de expressar a sua saudade, sua dor e seu luto, espero que encontre a sua. Diantes das perdas que sofri, eu encontrei a minha — não tão cedo como eu imaginava e que as pessoas esperam. “Homem Aranha: Azul” é um dos meus títulos favoritos do aranha, um dos personagens que tenho tatuado na pele. Apreendi muitas coisas com ele e o tema dessa coluna foi uma delas.