Você sabia que o queerbaiting está presente em alguns animes? O termo vem das palavras em inglês queer (identidade de género ou orientação sexual que não é considerada tradicional, normativa ou maioritária) + bait (isca). Sendo assim, o queerbaiting é uma técnica de marketing que tem como objetivo criar um conteúdo atrativo para o público LGBTQIA+ . No entanto, isso serve apenas para aumentar o número de audiência, pois a validação de tal relação entre os personagens não acontece.

Assim, trata-se de uma representatividade que não existe; é enganosa. Apesar disso, tal estratégia é comumente usada no mundo cinematográfico há anos, e isso não deixa de ser diferente no universo otaku.

Aviso: o conteúdo abaixo contém spoilers.

As memórias de Marnie: queerbaiting em relação confusa entre meninas

anna e marnie as memórias de marnie
animes queerbaiting
Divulgação: Studio Ghibli
  • Filme disponível em: Netflix.

E vamos de Studio Ghibli, o gigante das animações japonesas! Em As memórias de Marnie (2014) acompanhamos Anna Sasaki, uma menina que vive com sua mãe adotiva, Yoriko Sasaki. Devido a problemas de saúde, a menina vai passar um tempo na casa de seus tios adotivos no campo. Solitária, Anna está sempre explorando, e é assim que ela encontra uma velha mansão abandonada do outro lado do lago. Lá, Anna conhece uma garota loira e misteriosa chamada Marnie, e logo elas se tornam amigas.

Entretanto, um mistério toma forma à medida em que coisas curiosas começam a acontecer. Anna começa a ter apagões de memória, ao mesmo tempo em que Marnie não aparece muito fora do local da mansão. Com isso, a busca por respostas se torna urgente, e o telespectador pode chegar a pensar de tudo: que Marnie sofre repressão e maus tratos ou até mesmo que ela é um fantasma.

Um dia, ao retornar à mansão, Anna não encontra Marnie, e sim uma nova personagem: Sayaka Doi. Ao conversar com a menina, ela descobre que Sayaka e sua família se mudaram para a mansão. Nesse interím, Sayaka entrega para Anna um diário que encontrou na casa, e conta que ele pertence a alguém chamado Marnie. É a partir daí que finalmente temos a revelação do que ninguém cogitou: Marnie, na verdade, é a avó de Anna. É isso mesmo, todas as vezes em que ela aparece, trata-se somente de memórias e imaginações de Anna.

Dessa forma, a conclusão é de partir o coração do público LGBTQIA+, pois as cenas em que Marnie e Anna estão juntas são repletas de carinho, olhares, tensão e diálogos que dão indício de um sentimento íntimo. Mesmo para quem não faz parte da comunidade, a sensação é de total confusão. No geral, o final é totalmente anticlímax, e o filme não consegue trazer a temática proposta de resgate de ancestralidade e identidade.

Sakura Card Captors: um dos animes mais famosos oculta relação entre garotos

touya e yukito sakura card captors
Imagem: Reprodução / Estúdio Madhouse
  • Série disponível em: a série não está disponível em nenhum streaming atualmente.

A cena da imagem acima é do episódio 52 de Sakura Card Captors (1998 – 2018). Esse famoso shoujo já foi citado muitas vezes como um anime que traz representatividade LGBTQIA+. Porém, tal representação é feita de forma oculta, e caracteriza portanto queerbaiting em um dos animes mais conhecidos de todos os tempos. Touya Kinomoto, irmão da protagonista Sakura, possui uma relação bem próxima com seu melhor amigo, Yukito Tsukishiro. Na primeira temporada, episódio 14, ficamos sabendo que um dos “7 mistérios” da sala de Sakura é por que Touya e Yukito não têm namoradas.

O que se nota ao assistir é que de fato Yukito fica com frequência na casa de Touya, e que o garoto dorme lá diversas vezes, pois eles sempre passam muito tempo juntos. Em diversas cenas do animê, é possível notar eles trocando carícias. Mais à frente, no episódio 65, há a afirmação de que Touya passar seus poderes para Yukito é um ato de amor verdadeiro. Além disso, uma frase do episódio 66 é particularmente famosa:

Não importa se você é humano ou não, contanto que fiquemos para sempre juntos.

Touya Kinomoto (Sakura Card Captors).

Nanase Ohkawa, líder do grupo de mangakás CLAMP, criador do mangá, falou sobre essa questão no Memorial Book (2001). Em entrevista, ela diz que geralmente os trabalhos do grupo possuem temas de fundo, e que em CardCaptor Sakura o objetivo era “deixar as minorias à vontade”. Ainda mais, ela acrescenta que “dependendo do ponto de vista”, as pessoas poderiam ver Yukito e Touya como grandes amigos ou algo além disso. Ou seja, o romance entre os personagens é algo que fica no ar.

Puella Magi Madoka Magica: anime de fantasia com romance GL implícito

madoka e homura puella magi madoka magica queerbaiting
Imagem:
  • Série disponível em: a série não está disponível em nenhum streaming atualmente.

Puella Magi Madoka Magica (2011) é um anime do gênero fantasia/terror. A animação é sobre garotas que, para obter poderes mágicos, fazem um trato com uma criatura mágica chamada Kyubey. No acordo, elas precisam lutar contra bruxas, e em troca Kyubey as concede poderes mágicos para que possam se tornar as Puella Magi.

As duas personagens principais do anime, Madoka Kaname e Homura Akemi protagonizam diversas cenas de afeto e diálogos profundos. Bem como, durante a narrativa inteira as meninas demonstram preocupação uma com a outra, sendo Madoka dona de uma das frases mais emblemáticas do animê:

Eu sei o quanto você se esforçou para tentar me ajudar em todas aquelas linhas do tempo. Eu sei de tudo. Vi as incontáveis lágrimas que você derramou, os diversos ferimentos que suportou, mas, ainda assim, continuou em frente, tudo por mim. (…) Então, mesmo que não consiga me ver ou ouvir, estarei bem ao seu lado.

Madoka Kaname (Puella Magi Madoka Magica).

A propósito, o que mais dá indícios de que existe um interesse amoroso entre as duas é a abertura do anime. Nela, temos um foco maior nessas duas personagens, e pode-se perceber que há um sentimento forte e bem íntimo entre elas. Em suma, esse é um daqueles animes que escancara mesmo o queerbaiting, e chega a ser revoltante quando o telespectador se depara com um final sem nenhuma confirmação.

Neon Genesis Evangelion: um dos animes clássicos com maior queerbaiting

neon genesis evangelion shinji e kaworu
Imagem: Reprodução: Gainax/Tatsunoko
  • Série disponível em: Netflix.

Em Neon Genesis Evangelion (1995 1996), anime clássico dos anos 90 sobre ficção científica, há um personagem que deixou uma dúvida na cabeça dos fãs quanto à sua sexualidade. Se trata de ninguém menos e ninguém mais do que Shinji Ikari, o protagonista da história.

Durante toda a narrativa, Shinji sempre pareceu ser hétero por sua notável atração por diversas personagens do gênero feminino, tais como Rei Ayanami, Misato Katsuragi e Asuka Langley Soryu. Entretanto, mais para o final da série, um novo personagem do gênero masculino aparece, Kaworu Nagisa. As interações entre Shinji e Kaworu levantaram suspeitas por parte da audiência, e foi aí que especulações e teorias surgiram em torno da orientação sexual do personagem.

O anime entrou no catálogo da Netflix em 2019 com uma nova dublagem, mas houve censura na tradução. Aliás, não só na dublagem como também nas legendas, o trabalho de tradução modificou os diálogos entre Shinji e Kaworu, afetando assim o sentido das conversas entre eles. Dessa forma, o entendimento do público sobre a existência de um romance foi ainda mais prejudicado.

Afinal, o queerbaiting é ou não um bom negócio?

Após todos esses exemplos, ao menos uma coisa fica clara: sim, é verdade que produções antigas evitavam totalmente abordar a existência de uma comunidade não heteronormativa. Porém, muitas vezes e na maioria dos casos, tais produções inseriam esses casais na trama apenas para se esquivar de acusações de falta de representatividade. Em representações assim, o romance LGBTQIA+ acaba por ficar totalmente escondido, tal qual um comportamento criminoso, como inclusive, sabemos que já foi acusado de ser.

A estratégia por traz disso é nem desagradar um público, nem se comprometer com o outro. O resultado disso são produções que buscam meramente vender um produto, mas que no fim das contas deixam o público representado insatisfeito, pois é problemático e errado se propor a representar vivências sem representá-las de fato. Em síntese, a comunidade LGBTQIA+ está cansada desse tipo de tática mentirosa e merece respeito. Por fim, o ideal para criar um conteúdo de credibilidade nos animes é evitar apelar para o queerbaiting.