“Encomendaram um plano”, de Ricardo Bernhard, é um convite satírico para o absurdo
Já imaginou ser obrigado a conviver isolado consigo mesmo e com desconhecidos durante tempo indeterminado? Esse é o ponto de partida de “Encomendaram um plano”, quarta obra do escritor carioca Ricardo Bernhard. Dessa forma, o autor apresenta uma narrativa guiada por elementos do gênero absurdo, sendo possível identificar características de Franz Kafka, Samuel Beckett, e, como enfatizado na orelha do próprio livro, Thomas Pynchon.
A obra é narrada em terceira pessoa, e acompanha o cotidiano de oito personagens após misteriosamente serem convocados a um palácio. Inicialmente confusos, o grupo logo descobre que a virtude do chamado é elaborar a solução para um desafio. Assim, são obrigados a conviverem com suas diferenças e seus próprios reflexos, que se destacam no isolamento por não estarem inseridos em suas antigas rotinas agitadas.
O caos cuidadosamente planejado
Na ilha, tudo funciona perfeitamente sob o comando da Presidência. E, caso não seja assim, então é meticulosamente organizado do modo que a entidade acredita que deva parecer.
É dessa forma que somos apresentados à relação dos habitantes da ilha com a Presidência – cuja existência, apesar de ausente em formato físico, está sempre presente ao decorrer da narrativa e das ações dos personagens.
“Será que ninguém da presidência vai aparecer para explicar por que fomos colocados aqui, para que estamos aqui, o que vão fazer de nós?” (Capítulo I, pág. 10)
Assim, quando os oitos recebem a convocação da presidência para irem até o palácio não há outra escolha a não ser obedecer o chamado. A trama enfatiza o quanto o comunicado é pavoroso, gerando pensamentos de arrependimentos e lembranças que os personagens não gostariam de revisitar. Logo, a única explicação que encontram para a convocação são suas próprias ações.
Leia também: Franz Kafka | A escrita que transformou o absurdo em arte
Ambientação
Entretanto, para a surpresa de todos, não encontram nenhum representante da Presidência para instruir o motivo da solicitação de suas presenças ao chegarem no palácio. E nem uma sentença iminente devido alguma ação do seu passado. Pelo contrário, estão presentes apenas os oitos convocados. Como ninguém ousa desobedecer um comunicado da Presidência, logo decidem se acomodar no palácio.
Por outro lado, não é cabível achar nada estranho na ilha. Ainda mais vindo da presidência. […] A presidência era a senhora de todas as lógicas. Na incerteza, cada um ficou com a sua cama, cada um ficou com o seu destino. (Capítulo IV, pág. 36)
O ambiente apresenta oito cômodos, sendo que o dormitório e o banheiro são compartilhados, sem privacidade embora o respeito exista entre eles. O palácio segue um design minimalista, ainda que contenha um grande acervo na biblioteca e na sala de projeção. Além disso, os personagens também são agraciados pela presença de uma sala de jogos, escritório, academia e o refeitório.
Dessa forma, a rotina segue no ambiente, e apesar de não verem, sabem que há uma equipe que organiza e limpa o local para eles, assim como servem refeições frescas e fartas. Se não fosse pela sombra da Presidência pairando sob o cotidiano, seria possível aproveitar a estadia. Isso até Benjamin, um dos oitos selecionados, encontrar um bilhete.
A trama da missão
Após semanas de convivência, o grupo finalmente encontra um objetivo que pode justificar sua presença no palácio. Com o descobrimento do bilhete, os personagens passam a se ocupar para a resolução da missão que aparentemente é a porta de saída do palácio.
Todavia, desde do principio são atingidos pela complexidade da tarefa. O objetivo é elaborar um plano de reconciliação para dois vizinhos, que se odeiam e são intolerantes um com o outro. Assim, tentam unir suas habilidades e personalidades para resolver. Sendo o grupo formado por:
- Abigail: Historiadora
- Benjamin: Coreógrafo
- Esther: Psicóloga
- Nicholas: Programador de computadores
- Oliver: Juiz de cadeira de tênis
- Sara: Bióloga
- Sidney: Diretor de cinema
- Valentina: Joalheira
Contudo, além de profissões distintas, também são impactados pelo ego, as diferenças de idade – embora não explícitas, mas presentes nas dinâmicas entre os personagens – e as particularidades de cada um.
Apesar das diferenças, o grupo ainda se esforça para se reunir na resolução do mistério. Tanto da missão sobre os vizinhos, quanto das teorias sobre a presidência e o motivo do isolamento – há aqui um teor existencial, característica forte da ficção absurda.
Leia também: Raquel Setz reúne histórias de terror existencial em “Desfiguração”
O elenco improvável por trás do plano
Sendo assim, os leitores conhecem os medos, inseguranças e a prepotência dos personagens. Não só do ponto de vista dos próprios, mas também da visão que os outros possuem. O autor utiliza a técnica narrativa chamada “falsa terceira pessoa”, que apresenta, como um monólogo interior, pensamentos e pontos de vista do personagem. Dessa forma, os capítulos se alternam entre os oitos.
Ao decorrer da trama, o grupo se familiariza com o jeito de agir e as personalidades de cada um. Entretanto, ainda é palpável a desconfiança e a incerteza sobre o outro, principalmente quando não conseguem conversar sem que haja brigas. No palácio, o ego e a ignorância de alguns se infla, enquanto para outros o silêncio se torna a melhor solução.
O desenvolvimento individual e coletivo é envolvente e cauteloso. Assim, se entrelaça conforme as dinâmicas são apresentadas. De tal forma que, em muitos momentos, é possível que o leitor discorde ou pense o mesmo que a visão de um personagem sobre o outro. Além disso, em certo ponto da trama, os personagens sentem que estão se tornando os vizinhos do problema-enunciado que, aparentemente, foram convocados para solucionar: Intolerantes e odiosos uns com os outros.
Devido a convivência ou ao precisarem encarar seus próprios erros e defeitos? Sendo o último caso, a solução seria alterar suas personalidades em prol de um ambiente harmônico? Não sabem dizer, a empatia parece escapar aos poucos e o isolamento no palácio sufoca cada dia mais. Assim, entram em um beco sem saída. Sem saberem ao certo como vão conseguir resolver a missão para, então, voltarem às suas vidas normais na ilha. Que agora também se questionam se eram realmente normais e boas.
É nesse contexto que Ricardo Bernhard se destaca na sua estreia na ficção absurda.
Entre o cômico e o insólito, existe o absurdo

Apesar de ser a primeira vez do autor se aventurando no gênero, a narrativa é apresentada com maestria. Bernhard desenvolve “Encomendaram um plano” em um estilo camusiano, assim recorda a filosofia existencialista e até mesmo a metáfora de Sísifo, com a tarefa sem sentido e repetitiva, cotidianamente.
O tom empregado na obra é de grande importância para o entendimento de seu contexto e universo. Dessa forma, a ausência de uma localidade exata – afinal, onde fica a ilha? – e uma linha temporal, transportam o leitor para se sentirem tão perdidos no isolamento quanto os próprios personagens.
O grupo transita por conflitos internos e externos, para além de crises existenciais, que também apresenta reflexões sobre liberdade e responsabilidade – individual e social. Essa perspectiva torna-se clara especialmente quando os personagens passam por um desenvolvimento que lembra o ensaio-ficção absurda “A Queda”, de Albert Camus.
Na obra, Camus mostra como a confissão pode revelar tanto a fragilidade humana quanto o peso da autoconsciência. Do mesmo modo, os personagens descobrem que reconhecer suas falhas diante do grupo não os liberta. Pelo contrário, reforça o perigo de uma consciência que não cessa de julgá-los.
Assim, mesmo com realidades tão diferentes, o grupo de oito pessoas enfrentam dilemas e revoltas parecidas. Seja por estarem inseridos no mesmo ambiente, onde aprendem a criar as próprias regras e respeitá-las, ou por enxergarem no outro uma projeção de si mesmos.
Além disso, Ricardo apresenta humor, sarcasmo e referências culturais – principalmente com Sidney, o diretor de cinema! O que complementa a narrativa, deixando a leitura ainda mais fluída enquanto segue com o mistério do palácio e da trama dos personagens.
Vale a pena a leitura?
Apesar da ressalva sobre os elementos da ficção absurda, a obra não só se destaca pela forma que é desenvolvida no gênero, mas também pelo modo que consegue manter o leitor envolvido e comprometido com o enredo.
Ler “Encomendaram um plano” foi uma ótima companhia, ao mesmo tempo que desenvolvi um grande vício, no sentido mais puro da palavra, pela narrativa. É inevitável não ficar curioso com o que irá acontecer em cada capítulo. Desde quais novas pistas sobre o enredo irão aparecer ou qual novidade sobre os personagens vou aprender até o famoso questionamento: Será que eles irão conseguir sair do palácio?
A leitura rapidamente se consolidou para mim como uma daquelas obras que é difícil de se afastar. E, quando acontece, é por pura revolta contra os personagens ou algum acontecimento. São aquelas famosas horas de pausa na leitura, simplesmente porque você não acredita no que acabou de ler e precisa de um tempo.
Dessa forma, é possível se identificar e se reconhecer na personalidade dos protagonistas. Ainda que não seja em primeira pessoa, as visões apresentadas ao decorrer da narrativa são consistentes e bem desenvolvidas. Particularmente, meus favoritos foram Valentina (a joalheira), Esther (a psicóloga), Benjamin (o coreógrafo) e Oliver (juiz de cadeira de tênis). Este último em especial me surpreendeu positivamente, pois comecei o livro odiando sua personalidade, mas aos poucos me apeguei em até mesmo seus pontos ruins.
Impressões sobre o livro
Sobretudo, apreciei a forma sutil que as personalidades dos personagens convergem com a profissão. Alguns mais que os outros, o que ajuda no enredo sobre o ego e dinâmicas, contudo é perceptível o quanto suas histórias fora do palácio continuam a ecoar ali dentro. Ainda que desenvolvam novos hábitos e percepções moldados pelo tempo no isolamento. Dessa forma, os personagens não deixam de ser quem são; apenas revelam camadas que, no cotidiano, permaneceriam cuidadosamente ocultas.
Outro ponto que marcou minha leitura foi o incômodo com a linha temporal inexistente, que posteriormente me aproximou ainda mais da narrativa e dos personagens. Os questionamentos sobre quanto tempo havia se passado desde o início tornaram-se também meus, assim criando uma sensação compartilhada de desorientação que reforça a imersão na história.
Entretanto, não posso deixar de ressaltar – mesmo sem spoilers – que o final me deixou confusa. E com muitas dúvidas, talvez tanto quanto os próprios personagens. Por isso, não escondo que ansiaria por um segundo livro nesse mesmo universo, ainda que, a princípio, esse não pareça ser o objetivo do autor.
Mas, afinal, toda leitura que se encerra deixando um sabor de “quero mais” é, indiscutivelmente, uma leitura que vale a pena.
Nicholas se pergunta se os áulicos da presidência a colocaram no palácio para que ele pudesse ter a oportunidade de consertar o que errou com a ex-namorada. A semelhança não é acidental. Não pode ser. Nada na ilha é acidental. (capítulo XII, pág. 107)
📲 Entre no canal do WhatsApp e receba novidades direto no seu celular e Siga o Geekpop News no Instagram e acompanhe conteúdos exclusivos.
Imagem de capa: Editora 7 letras