O episódio final de Cidade de Deus: A Luta Não Para entrega o que promete, amarrando com firmeza grande parte dos arcos narrativos que acompanharam a trama até aqui.

Aly Muritiba, diretor da série, se destaca ao encerrar de forma satisfatória os principais dilemas e conflitos apresentados. Após a impactante morte de Barbantinho, o foco se desloca para Berenice (Berê), que surge como uma liderança política em ascensão. Sua candidatura a vereadora da Cidade de Deus coloca a personagem no centro dos acontecimentos, simbolizando o poder crescente das mulheres na trama. A transição de Berê de coadjuvante para protagonista na luta política foi uma escolha acertada e prepara o terreno para uma segunda temporada focada em sua atuação no poder.

O poder da crítica social da série

A crítica social da série permanece afiada, especialmente no arco de Buscapé e Lígia. A dupla desmascara finalmente as ligações entre o Secretário de Segurança e o tráfico, numa sequência de tirar o fôlego. Mas, como em muitas histórias da realidade no Brasil, o desfecho deixa uma sensação amarga: o poder dos poderosos continua inabalável. A série não poupa críticas ao sistema político, usando a guerra nas favelas como ferramenta de análise da corrupção e manipulação de votos. Esse realismo, por mais doloroso que seja, faz com que Cidade de Deus se destaque como uma das melhores produções brasileiras atuais, com uma abordagem visceral e corajosa.

‘CIDADE DE DEUS: A LUTA NÃO PARA’: ÚLTIMO EPISÓDIO DA PRIMEIRA TEMPORADA
Episódio final de Cidade de Deus – Foto: RENATO NASCIMENTO

Personagens gigantes, em uma história maior ainda

Berenice começou de forma tímida, quase despercebida no início da série, mas foi crescendo aos poucos, com uma força silenciosa. Ao longo dos episódios, ela se agigantou de maneira impressionante, e muito disso se deve ao mérito extraordinário de Roberta Rodrigues. Sua interpretação trouxe uma profundidade única, transformando Berenice em uma figura de liderança incontestável. Cada escolha difícil, cada perda pessoal, moldou sua trajetória e a preparou para assumir o papel de candidata a vereadora, mostrando que seu lugar de poder foi conquistado com suor e dor. No final, Berenice se ergueu como uma das personagens mais fortes e imponentes, com uma presença que dominava a tela.

‘CIDADE DE DEUS: A LUTA NÃO PARA’: ÚLTIMO EPISÓDIO DA PRIMEIRA TEMPORADA
Foto: RENATO NASCIMENTO

Buscapé, por sua vez, demorou a ter o destaque merecido. Durante boa parte da trama, parecia à margem, como se o tempo de tela e o arco narrativo não lhe fizessem justiça. Mas quando finalmente despontou, tudo valeu a pena. O fotógrafo ousado e corajoso, interpretado com brilhantismo por Alexandre Rodrigues, mostrou a que veio. Sua jornada não foi apenas uma busca pela verdade, mas uma exposição crua de sua humanidade, seu coração e sua coragem inabalável. Nos momentos finais, Buscapé brilhou como nunca, provando que sua história de resistência e verdade tinha um peso maior do que qualquer outro na trama, e foi a ousadia de Alexandre que trouxe esse personagem de volta ao centro com a intensidade merecida.

Os desfechos que todos esperavam, mas que talvez não tenham vindo

No entanto, nem tudo são elogios. O desfecho de Bradock, interpretado com maestria por Thiago Martins, é decepcionante. O vilão, que era o principal motor da tensão, acaba perdendo espaço no episódio final. Embora o destino de Bradock já fosse previsível, faltou um tratamento mais cuidadoso para seu fechamento. Sua ameaça é deixada de lado, enquanto subtramas ganham um tempo de tela desproporcional. Esse desperdício de potencial, especialmente em um personagem tão forte, deixa uma lacuna evidente no episódio. Para um antagonista tão dominante, esperava-se um confronto final à altura.

Jerusa, interpretada com intensidade por Andreia Horta, encerra sua trajetória de maneira enigmática, deixando no ar um mistério intrigante que sugere um possível retorno. Seu desfecho, embora impactante, carrega a sensação de que havia mais a ser explorado. Jerusa, uma das personagens mais complexas da série, merecia um aprofundamento maior, principalmente pelo poder que exercia sobre os demais. Mas acredito que a intenção aqui é mostrar que assim como um castelo de cartas, o poder que ela exercia ruiu como um sopro, e tudo isso graças a atuação magnifica de Andréia Horta.

Outro ponto fraco do episódio é a falta de resoluções para alguns arcos que ficaram em aberto. Embora o foco principal tenha sido resolvido, há a sensação de que algumas tramas foram deixadas para a segunda temporada sem qualquer referência ou indicação de continuidade.

‘CIDADE DE DEUS: A LUTA NÃO PARA’: ÚLTIMO EPISÓDIO DA PRIMEIRA TEMPORADA
Foto: RENATO NASCIMENTO

O resultado é surpreendente, em todos os sentidos

No cerne da história, está a brutal e constante realidade da corrupção e da violência no Rio de Janeiro. O diretor, em uma espécie de desabafo social, expõe as faces ocultas e sombrias que todos conhecemos dos telejornais – o domínio das favelas, seja pelo tráfico, seja pela milícia, ou pela omissão criminosa do Estado.

A série deixa claro que o problema é sistêmico, sem soluções fáceis ou rápidas. O retrato cru da Cidade Maravilhosa revela que não basta olhar para vilões e mocinhos, mas reconhecer que, no centro dessa trama de poder e violência, estão os moradores, os cidadãos de bem, que muitas vezes são esquecidos nas discussões. É uma realidade que exige ser encarada sem demagogia, algo que a mídia e até a arte frequentemente ignoram. A série, com seu ponto de vista legítimo, levanta a questão de até que ponto realmente se aprofundou nos problemas e se abordou todas as nuances dessa dura realidade.

Mesmo assim, a série na totalidade merece aplausos. Com uma produção de qualidade, elenco afiado e roteiro intenso, Cidade de Deus: A Luta Não Para é um marco nas séries nacionais. O elenco brilha do início ao fim, com cada personagem cumprindo uma função essencial dentro da narrativa. Aly Muritiba demonstra sua habilidade em construir histórias intrincadas e poderosas, e agora, com uma segunda temporada garantida, resta a curiosidade de ver como ele conduzirá esses personagens em suas novas jornadas.