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No episódio A História e o Motor, da nova temporada de Doctor Who, a trama nos leva a uma barbearia na vibrante cidade de Lagos, na Nigéria. Mas não se trata de um salão comum, ali, clientes presos no espaço-tempo precisam compartilhar histórias para alimentar o motor de uma nave que transita pela teia cósmica da ficção.

Através desse enredo criativo, o roteiro de Inua Ellams celebra a tradição oral africana, transformando a barbearia em um espaço místico onde memórias são convertidas em energia. Dirigido por Makalla McPherson, o episódio combina ficção científica e mitologia com uma estética narrativa que remete aos griôs, contadores de histórias do continente africano.

Review | Doctor Who: A História e o Motor (The Story and the Engine)
Reprodução: Disney+

A ambientação da barbearia de Omo (vivido por Sule Rimi) é um dos destaques visuais do episódio. A conexão sutil com a TARDIS, as portas e janelas estrategicamente emolduradas pela direção de arte, e a presença breve, mas marcante da Doutora Fugitiva (Jo Martin) adicionam camadas de mistério e expectativa. Apesar de sua participação ser apenas um cameo, a aparição levanta especulações, será esse um indício de que veremos mais da personagem nesta temporada?

Ncuti Gatwa entrega uma performance sólida como o 15º Doutor. O figurino vibrante e a abordagem mais madura do personagem demonstram uma evolução em relação à temporada anterior. Um dos momentos mais simbólicos envolve os dreadlocks estilizados como um mapa, revelando a engenhosidade visual do episódio. A jornada até o “coração da máquina”, com sua mescla de componentes orgânicos e metálicos, também impressiona tanto esteticamente quanto conceitualmente.

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No entanto, o clímax da trama apresenta o ponto mais controverso do roteiro. A redenção do vilão, que parte de um desejo intenso de vingança e rapidamente se transforma em uma epifania de culpa, soa apressada e desconectada. A resolução, com o Barbeiro assumindo o controle da barbearia e prosseguindo na coleta de histórias, carece de impacto emocional e enfraquece a força dramática construída até ali.

Ainda assim, A História e o Motor mantém a boa média da temporada atual de Doctor Who. O episódio se destaca ao integrar temas como criação artística, ancestralidade e o poder das narrativas. Apesar de não se aprofundar diretamente nas figuras divinas, ele aborda com sensibilidade a importância das histórias passadas de geração em geração. Tais elementos dialogam com o conflito central da temporada, o bloqueio do ano de 2025 na linha do tempo do Doutor e de Belinda.

Review | Doctor Who: A História e o Motor (The Story and the Engine)
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Por fim, chama atenção a recorrente aparição de Dona Flood, agora inserida organicamente nos episódios. Embora sua presença possa indicar revelações importantes no desfecho da temporada, há um risco claro de quebra do ritmo narrativo, especialmente quando acompanhada de quebras de quarta parede e humor autorreferente que nem sempre funcionam.

Mesmo com suas falhas, A História e o Motor é um episódio ousado e criativo, que aposta na força da oralidade como ferramenta de deslocamento e resistência. Um tributo à riqueza cultural africana dentro do universo expansivo de Doctor Who.