Podcast, o maior mal da humanidade

A segunda temporada de Doctor Who, sob a nova parceria com a Disney, tem mantido um nível de qualidade surpreendente. Consolidando-se como uma das fases mais instigantes da série em anos. “Dia de Sorte” é mais uma amostra clara dessa maturidade narrativa em Doctor Who. O episódio, dirigido por Peter Hoar (A Revolução Robô), oferece um equilíbrio preciso entre o drama psicológico, a crítica social e o suspense sci-fi. Explorando temas atuais como desinformação, culto à personalidade e manipulação ideológica.

Com uma condução cadenciada e atmosfera claustrofóbica, “Dia de Sorte” se destaca pelo uso de elementos de horror folclórico, desta vez inseridos em um contexto mais político e midiático. A tensão é construída de forma progressiva, revelando uma trama onde a verdade se fragmenta diante de narrativas distorcidas por figuras públicas ambiciosas. O roteiro não só sustenta esse clima com competência como também evita o didatismo, apostando numa crítica mais sutil e orgânica ao negacionismo e à cultura de massa tóxica.

Uma atmosfera intensa e carregada de simbolismo

Review | Doctor Who: Dia de Sorte (Lucky Day)
Reprodução: Disney+

Ruby Sunday (Millie Gibson) retorna de forma relevante à narrativa, agora distante do Doutor e lidando com os efeitos psicológicos da vida comum após ter vivido aventuras extraordinárias. Seu trauma silencioso é palpável, e sua participação em um podcast onde declara a existência de alienígenas expõe o conflito entre verdade pessoal e ceticismo coletivo. Curiosamente, Ruby funciona melhor nessa fase solitária do que como companion ativa, ganhando profundidade dramática e emocional.

Interpretado com intensidade por Jonah Hauer-King, Conrad é o antagonista que se apropria da imagem do Doutor para justificar uma cruzada conspiratória. Sua trajetória representa com precisão os perigos da idolatria cega e da manipulação midiática. O personagem espelha figuras públicas que se aproveitam do caos para ganhar poder e seguidores, negando a realidade e promovendo discursos inflamados em nome de “liberdade” e “verdade”. A virada narrativa envolvendo sua traição tem o reforço de uma trilha sonora em tom menor que intensifica a gravidade do momento.

Um dos grandes destaques do episódio é Kate Lethbridge-Stewart, vivida por Jemma Redgrave. Em uma atuação forte e carregada de autoridade, Kate reafirma seu papel como pilar ético da UNIT. Sua postura firme diante das mentiras propagadas por Conrad remete à figura clássica do Brigadeiro, consolidando-a como uma líder disposta a tomar decisões difíceis para proteger a humanidade. O confronto entre ambos é intenso e simbólico, refletindo dilemas reais sobre segurança, autoritarismo e responsabilidade institucional.

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Uma crítica incisiva à desinformação

Review | Doctor Who: Dia de Sorte (Lucky Day)
Reprodução: Disney+

Embora apareça pontualmente, o 15º Doutor (Ncuti Gatwa) deixa sua marca no episódio. Sua presença contida e segura transmite uma maturidade crescente, reforçada por diálogos com forte carga emocional e moral. A cena em que questiona Conrad sobre sua verdadeira identidade (“Você já conheceu Belinda?”) é um exemplo do tipo de monólogo que transforma episódios comuns em momentos icônicos para os fãs da série. Até mesmo Dona Flood surge de forma mais orgânica, com melhor integração à trama do que em episódios anteriores.

Dia de Sorte” articula com precisão uma crítica à sociedade fragmentada, onde a razão é substituída por crenças inflexíveis e slogans virais. A recusa do antídoto contra o monstro Shreek e a viralização de vídeos negacionistas refletem a impulsividade coletiva e a negação da ciência. O roteiro, felizmente, evita soluções fáceis ou moralismos excessivos, preferindo mostrar os efeitos colaterais da ignorância em sua forma mais crua. O clímax do episódio, onde Conrad é confrontado com a realidade que tentou negar, é um dos momentos mais fortes da temporada até aqui.

Pontos fracos e expectativas para o futuro

Review | Doctor Who: Dia de Sorte (Lucky Day)
Reprodução: Disney+

Embora quase impecável, o episódio apresenta algumas falhas pontuais. A sequência inicial do romance entre Ruby e Conrad soa superficial e destoante frente à densidade do restante da trama. Também há certa desorganização nas cenas de retorno à base da UNIT. No entanto, esses pequenos deslizes não comprometem a força do episódio como um todo.

Com a permanência do Doutor e Belinda em 2025 e a expansão dos mistérios envolvendo Dona Flood e agora Conrad, a série estabelece múltiplas camadas de narrativa que prometem um desfecho impactante. Se a qualidade se mantiver nesse nível, podemos esperar um final de temporada memorável, talvez até um salto ousado no desconhecido. Afinal, em Doctor Who, um pequeno pulo no abismo pode muito bem ser o início de uma nova grande aventura.