O inverno sangrento chegou a Buenos Aires
Baseada na emblemática HQ argentina criada por Héctor Germán Oesterheld e ilustrada por Francisco Solano López, O Eternauta ganha uma nova vida sob a direção de Bruno Stagnaro. A série, estrelada por Ricardo Darín, é composta por seis episódios e se concentra na primeira parte da obra original, retratando o início do apocalipse a partir da perspectiva de Juan Salvo, sua família e amigos, que enfrentam uma nevasca tóxica mortal.
Ao contrário de outras adaptações que optam por uma transposição literal, Stagnaro compreende que adaptar é reinterpretar. Sua escolha por ambientar a história no presente, ao invés da década de 1950, reduz custos de produção e, ao mesmo tempo, mantém a força da crítica social originalmente presente nos quadrinhos. Ainda assim, essa atualização pode comprometer parte da carga política da obra, especialmente no que diz respeito ao contexto histórico das ditaduras militares e à crítica ao imperialismo. A transformação de Salvo em um veterano da Guerra das Malvinas tenta preencher esse vácuo, mas não oferece o mesmo impacto narrativo.

A força do cotidiano em meio ao caos
Curiosamente, um dos pontos mais criticados na HQ, a falta de aprofundamento do cotidiano de Salvo e sua família no início da catástrofe, se transforma no ponto alto da primeira temporada da série. Stagnaro explora com eficácia esse momento inicial, valorizando o drama humano e evitando soluções heroicas. Sua abordagem é minimalista e crua, revelando personagens tomados por instintos de autopreservação. Em vez de engrandecer atos de bravura, O Eternauta mostra indivíduos falhos, muitas vezes egoístas, agindo sob pressão extrema.
Juan Salvo, interpretado por Darín, é introspectivo e pragmático. Ex-soldado e exímio atirador, sua prioridade absoluta é encontrar a filha Clara, após o colapso causado por um pulso eletromagnético. Seu visual, composto por roupas comuns adaptadas para sobreviver à nevasca, remete ao símbolo de resistência dos quadrinhos, mas com um tom mais realista e mundano.

Uma crítica à individualidade moderna
A figura de Alfredo “Tano” Favalli, vivido por César Troncoso, representa uma liderança autoritária que surge em tempos de crise. Sua postura inflexível reforça o isolamento como estratégia de sobrevivência e expõe a tendência à formação de microditaduras domésticas. Essa tensão revela o contraste entre o espírito coletivista da HQ original e o individualismo predominante no mundo contemporâneo.
As personagens femininas, por outro lado, oferecem um contraponto mais empático e equilibrado, reforçando a crítica social de forma sutil, mas eficaz. Essa diferenciação pode gerar incômodos em parte do público, mas traduz uma visão realista sobre como diferentes perfis lidam com situações-limite.

Narrativa densa e visual impactante
Stagnaro aposta na manutenção do mistério como ferramenta narrativa. As explicações sobre os eventos catastróficos são adiadas, criando tensão e expectativa. Mesmo leitores da HQ notarão que a série reserva respostas para a próxima temporada, cuja produção já está confirmada.
A direção de arte de María Battaglia e Julián Romera impressiona pela consistência. A Buenos Aires coberta de neve é silenciosa, opressiva e assustadoramente real. A fotografia de Gastón Girod reforça esse clima, utilizando luzes mínimas e composição claustrofóbica para reforçar a atmosfera de colapso e desespero.
Os efeitos especiais são utilizados com moderação, priorizando a narrativa. A computação gráfica, aliada a efeitos práticos pontuais, surge apenas quando essencial para o desenrolar dos acontecimentos. Essa escolha confere verossimilhança às cenas e evita distrações desnecessárias. A integração entre cenários físicos, projeções digitais e atuações humanas é fluida, sem quebra de imersão.

Vale a pena?
O Eternauta, em sua primeira temporada, estabelece um tom sóbrio e angustiante que respeita o legado da HQ sem abrir mão de uma identidade própria. Ainda que a atualização do contexto histórico possa diluir parte da crítica política original, a série se sustenta por suas escolhas artísticas sólidas, personagens densos e um olhar brutalmente honesto sobre a natureza humana.
Se a segunda temporada conseguir resgatar de forma mais evidente os comentários sociais que marcaram a obra de Oesterheld e López, O Eternauta poderá se consolidar como uma das adaptações mais relevantes da ficção latino-americana contemporânea. Mas, mesmo que esse aprofundamento não se concretize, a série já entrega uma poderosa reflexão visual sobre sobrevivência, egoísmo e empatia em tempos de crise.
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