O acesso à cultura geek no Brasil é algo peculiar. Em muitos casos, elitista. Digo isso por experiência própria, uma vez que, sofri em inúmeras ocasiões de perto. Títulos caros, superfaturados e sem uma segunda opção de compra mais acessível; eventos que acontecem durante a semana, excluindo a chance de fãs de baixa renda, ocupados em grande maioria pelas jornadas semanais de trabalho, de conseguir comparecer e aproveitar; entre outras ocasiões que irei abordar no texto. Essa dificuldade no acesso à cultura geek atinge principalmente jovens periféricos.
Antes de tudo, quero deixar claro: não apoio o compartilhamento de produtos piratas, nem qualquer coisa do gênero. Todo autor precisa ser remunerado mediante seus direitos legais. Portanto, o presente texto traz uma reflexão dentro da minha experiência enquanto leitor durante a adolescência.
Como conheci as histórias em quadrinhos
Fui um adolescente de baixa renda. Durante a minha infância, no período de alfabetização, as histórias quadrinhos adentraram a minha vida. Mais tarde, no auge da puberdade, conheci os mangás e os animes. Aliás, vale dizer que o primeiro filme que assisti no cinema foi aos cincos anos de idade. Era uma sessão de “A Viagem de Chihiro” do mestre – e polêmico – Hayao Miyazaki.
Logo no início, me contentava com os personagens de Maurício de Souza. Esses que li por todo o período que estive em processo de fisioterapia após uma lesão séria no braço direito — tentei subir em um muro repleto de musgo para imitar um certo herói aracnídeo. Foram meses difíceis. Os quadrinhos me ajudaram e, ao mesmo tempo, faziam com que minha mãe ficasse “fula” da vida. Afinal, após as sessões de fisio, onde meu braço deveria estar reto, a Turma da Mônica fazia com que ele dobrasse para segurar o formatinho mais famoso entre os fãs. No entanto, a minha história com essas páginas estava longe de acabar.
Essa pequena ação retrocedia a recuperação e as sessões eram mais demoradas — e a mágoa da minha mãe com os quadrinhos crescia. Porém, ela entende o quanto essas páginas me incentivaram na leitura e me fizeram escolher trabalhar contando histórias. Mesmo que essas sejam sobre algum produto sem superpoderes. Spoiler alert: sou da publicidade.
Conhecendo sites piratas de quadrinhos e mangás
Avançando no tempo, encontro-me com 15 anos e acabara de ganhar meu primeiro computador. Estava ansioso para acessar sites adu– que reuniam as informações sobre meus super heróis favoritos. No entanto, antes mesmo de pesquisar na internet essas informações, eu já entendia uma coisa: não teria dinheiro para comprá-las.
E não porque meus pais – divorciados – odiavam quadrinhos. Mas sim devido ao alto custo daqueles edições maravilhosas que eu namorava na banca durante as idas à padaria em frente a casa em que morava. Embora, nessa época, eu já houvesse preenchido duas colunas de requisições da biblioteca escolar que me renderam tardes incríveis lendo Asterix e Obelix, título criado em 1959 pelos franceses Albert Uderzo e René Goscinny.
Um mundo que não conhecia
Mesmo para época, as histórias em quadrinhos possuíam um preço elevado para jovens de baixa renda — o que ainda é uma realidade e isso não se retém só aos quadrinhos. O jeito era recorrer a biblioteca da escola, as públicas, os projetos sociais – esses que frequentei com periodicidade – e, mais tarde, aos sites piratas.
Como disse no início, não apoio o compartilhamento de conteúdo gratuito de forma pirata. No entanto, o Lucas de 15 anos não portava esse senso ético. Foram anos e anos consumindo desses sites. Por conta deles, acabei lendo títulos que nunca imaginava ter acesso à leitura, como boa parte dos títulos da Vertigo, mangás, fumettis, graphic novels, entre outros conteúdos do segmento. Apenas me contava com o que R$ 6,50 reais poderia comprar. Muitas vezes revistas com espaçamento de até dois meses.
Era difícil.
Conhece a Gibiteca Henfil?
Porém, existem alternativas legais para que não fiquemos reféns dos sites piratas. A Gibiteca Henfil, localizada dentro do Centro Cultura de São Paulo, é um ótimo meio para encontrar acesso a quadrinhos, mangás e outros conteúdos do universo geek. Ela fica no bairro Paraíso, próximo a estação de metrô Vergueiro. A Gibiteca é considerada uma das maiores da América Latina. Procura algum título? Com toda a certeza do multiverso interdimensional você vai encontrar lá. E o melhor? É tudo gratuito. Basta um cadastro com seu RG e um comprovante de residência.
Acesso à cultura: ainda um problema?
A curiosidade, assim como a disposição de um jovem, são quase infinitas. Independentemente de onde ela é redirecionada — isso para música, filmes, livros ou até mesmo, coisas piores. Ainda mais em um país que sofre uma taxação surreal em cima de livros, DVDs e CDs (mídia física), quadrinhos e tudo o que possa ser taxado ou inflacionado.
Além disso, esses jovens não são pensados como os destinos finais dessas obras. Nenhum jovem periférico irá comprar um Deluxe do Monstro do Pântano por R$ 464,55. Esse problema não fica somente no mundo dos quadrinhos. Cinema, música, teatro – principalmente -, exposições, entre outros lugares que deveriam ser democratizados em questão de acesso, são negados.
Em 2019, estive na PerifaCon, a primeira Comic-Con da quebrada. O evento tem como principal função ser o agente transformador e quebrar o muro que ainda segrega jovens periféricos geeks/nerds do conteúdo que eles tanto amam. Foi incrível. No evento, presenciei momentos únicos.
A felicidade das crianças que nunca vieram heróis presencialmente, conhecendo o mundo dos cosplayers. Autores e autoras pretas mostrando da melhor forma possível a importância da representatividade de crianças pretas e periféricas. Crianças que nunca souberam o quanto o RPG, por exemplo, é um artifício poderoso enquanto incentivador da criatividade, entre outros momentos que guardo na memória. No final do mês acontecerá a segunda edição do evento. Estarei lá, assim como meu amor pelo universo geek.
Uma crítica, não um apoio
Esse texto não é uma defesa ao consumo de quadrinhos, mangás e conteúdo nerd por vias ilegais. No entanto, proponho a reflexão: quando o acesso não existe, acha-se um meio. Ainda sonho com um ambiente democratizado. Que o acesso seja para todos. Ao passo que, valores acessíveis e correlatos ao público sejam implementados. Com isso, criam-se novos leitores e, quem sabe, desenhistas e escritores promissores.
Veja bem, até hoje o acesso a cultura engatinha – quando não encontra-se imóvel – a grande parte de jovens de baixa renda. E quando surgem projetos legais, que incentivam a leitura, a internet é preenchida por comentários grotescos — e, em alguns casos, preconceituosos. Porém, surge a pergunta “Não era melhor ficar apenas nas bibliotecas?”. A resposta é clara: não. A precariedade no acesso à cultura no Brasil é uma realidade longe de ser combatida. O acesso e o compartilhamento de conteúdos por vias ilegais também — aliás, até é feito, mas sabemos com que propósito.