Udo Kier teve uma extensa carreira marcada por parcerias com Andy Warhol, Madonna e Lars von Trier

Udo Kier faleceu neste domingo (23), aos 81 anos. Segundo seu companheiro, Delbert McBride, o ator alemão estava em um hospital em Palm Springs, na California. Mesmo após décadas de carreira, o artista continuava carregando uma presença magnética e de sensibilidade profunda.

Kier é um daqueles artistas cuja presença parece atravessar o tempo. Seus olhos claros e inquietantes, aliados a um domínio absoluto da estranheza e da elegância, criaram uma persona cinematográfica única. Em mais de cinco décadas de carreira, o artista habitou o terror, o pop, o melodrama e o cinema experimental com a mesma naturalidade. No Brasil, o ator conquistou o público como poucos estrangeiros conseguiram, cultivando uma relação de afeto que atravessou gerações.

Do cenário alternativo para o mainstream

A trajetória de Kier começou a ganhar contornos internacionais no início dos anos 1970, quando se aproximou do universo de Andy Warhol. O ator estrelou produções dirigidas por Paul Morrissey e associadas ao estúdio de Warhol, entre elas Flesh for Frankenstein (1973) e Blood for Dracula (1974). Esses filmes transformaram Kier em um ícone imediato do cinema underground, e a partir dali ele se tornou conhecido como um intérprete capaz de unir beleza, estranhamento e intensidade emocional sem limites. A estética quase ritualística dessas produções moldou a imagem que o acompanharia por toda a vida.

Anos depois, Kier expandiu sua presença para além do cinema cult europeu ao colaborar com Madonna em momentos decisivos da cultura pop. O ator participou dos videoclipes de Deeper and Deeper e Erotica e integrou o polêmico livro Sex, lançado pela artista em 1992. Suas aparições ao lado de Madonna reforçaram sua aura de figura transgressora, alguém que transitava com naturalidade entre o experimental e o mainstream, sempre com um olhar próprio e inconfundível. Em uma de suas entrevistas, Kier comentou que Madonna o chamava para papéis que desafiavam seus limites, e esse convite constante ao risco era algo que o fascinava.

Com o passar das décadas, o ator construiu uma filmografia que ultrapassou 200 títulos e que inclui parcerias com grandes nomes do cinema mundial. Ele colaborou diversas vezes com Lars von Trier, aparecendo em filmes como Dançando no Escuro (2000), Melancolia (2011) e Ninfomaníaca (2013). Também trabalhou com cineastas como Werner Herzog, Gus Van Sant, Rainer Werner Fassbinder e Todd Solondz. Sendo assim, não havia fronteira que o intimidasse e sua disposição em abraçar personagens desconfortáveis ou excêntricos tornou-se uma marca registrada.

Relacionamento com o público brasileiro

No Brasil, a relação com o público foi especialmente intensa. Kier se tornou presença querida em festivais, mostras e debates sobre cinema. O reconhecimento ganhou novos contornos quando ele integrou o elenco de Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Mesmo em uma participação pontual, sua presença deu peso simbólico ao filme, que se tornou um fenômeno cultural no país. Kier parecia compreender a energia única do cinema brasileiro contemporâneo e demonstrava genuíno carinho por essa parceria.

Essa aproximação se aprofundou quando voltou a trabalhar com Kleber Mendonça Filho em O Agente Secreto, lançado em 2025. No filme, Kier interpretou o personagem Hans, incorporando toda a carga dramática e ambígua que sempre definiu sua atuação. A escolha do ator fortaleceu a ponte entre o cinema brasileiro e a tradição internacional do cinema de gênero, criando uma combinação que ressoou com força entre os espectadores.

O fascínio brasileiro por Kier talvez se explique pela maneira como ele representava uma liberdade artística que raramente aparece em grandes estrelas internacionais. Kier aceitava papéis pequenos com o mesmo entusiasmo que dedicava a personagens centrais. Gostava de narrativas arriscadas, de figuras moralmente complexas, de mundos que fugiam do realismo convencional. Dessa forma, sua entrega total ao ofício criava um sentimento de cumplicidade com o público, como se cada novo filme fosse um convite a explorar territórios desconhecidos.

Udo Kier para sempre na memória

O ator era capaz de unir o grotesco e o sublime em uma mesma cena. Portanto, seu legado está inscrito não apenas nos grandes títulos de sua carreira, mas também na memória de quem acompanhou seu trajeto e encontrou nele um dos rostos mais fascinantes do cinema contemporâneo.

No Brasil, Udo Kier seguirá ocupando um espaço afetivo peculiar. Ele se tornou um símbolo da ousadia e da imaginação, além de um ponto de encontro entre públicos distintos. Seu trabalho continuará ecoando nas telas e nos debates sobre cinema, reafirmando a imagem de um artista que encontrou no risco a melhor forma de existir.

Imagem de capa: IMDb