Desde que me entendo como gente, jogo games que vem do Japão. Acredito ser verdade para a maioria dos consumidores de jogos, uma vez que junto com os EUA o Japão está no topo da lista dos produtores de games.

Já parou para pensar em como aprendemos sobre diferentes estilos de vida: vivências, dia-a-dia, costumes, ideologias, história, arte e etc. Resumindo; já prestou atenção na cultura que somos expostos e experimentamos como agentes ativos em jogos?

Decidi fazer esse review cultural evidenciando alguns jogos que nos fazem absorver em algum nível a cultura japonesa. O jogo não precisa ser desenvolvido por japoneses, mas tem que nos maravilhar com a cultura do Japão.

Edward Burnett Tylor

Cultura é…Todo aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade.

1. Yakuza

Conhecida por muitos como a máfia japonesa, existem vários fatores que diferenciam a clássica máfia, que no alto de sua semiótica, nos invoca o poderoso chefão ao que viria a ser Yakuza. A começar que a organização Yakuza, diferente da máfia, não é uma instituição criminosa, porém, também representa uma organização familiar hierárquica (de sangue ou adotiva), dogmática de valores ideológicos nacionalistas de direita.

Fonte: SEGA

A franquia Yakuza começa (cronológicamente) em “Yakuza 0” e representa um Japão vibrante a partir da década de 80 quando o boom econômico do Japão estava em seu ápice e o dinheiro estava flutuando na mão da população. Os jogos posteriores da série seguiram o processo econômico do país pois, em anos recentes o boom japonês se estabilizou.

Nas ruas do jogo conseguimos ver como os japoneses se comportam e se relacionam, um exemplo é o respeito de hierarquia tanto por idade quanto por ocupação. Luzes de Néon, bares, karaokês, barracas de comida e outros estabelecimentos culturais japoneses se mostram autênticos, representando muito bem como os jovens da época se divertiam. Também é possível ver o papel de gênero com clara distinção da função do homem e da mulher na sociedade.

Os lugares de Yakuza tem referências da cultura pop americana da década de oitenta, a qual se perpetuou no Japão por mais tempo que nos Estados Unidos. Visuais e vestimentas mais extravagantes para a vida noturna e visuais mais conservadores para a vida operária. Vale falar da influência americana na cultura nipônica durante a era Meiji onde aconteceu a adoção de várias ideologias ocidentais como o militar, vestimenta e até a própria constituição. Essa retenção da cultura ocidental se adapta a cultura japonesa ao invés de substitui-la.

Fonte: SEGA

Após a segunda guerra mundial, para assegurar uma influência americana e de poder ocidental no mundo, foi enforcado no Japão ideologias liberais e capitalistas, pois eles viviam em meio de bastante influência da URSS. Isso levou os EUA a injetar muito dinheiro na economia japonesa, possibilitando a condição que o jogo Yakuza se encontra.

Embora muito debatido, os Yakuza surgiram em meio ao século XVII. O povo burakumin, que literalmente significa “povo da aldeia”, era um povo discriminado e segregado. Não era aceito eles viverem e conviverem com as pessoas pois eram considerados impuros (ideologia xintoísta e budista) por trabalharem com morte (coveiros, açougueiros, carrascos, caçadores, coureiros por exemplo). Após muito isolamento, essas pessoas criaram sua própria organização social e atividades de sustento para conseguirem viver.

Não é algo difícil de acreditar, a segregação social por valores morais enforcados por leis é algo recorrente do homem. Atribuímos valores fictícios a pessoas por características, ideologias e ocupação, assim as discriminando, degradando, oprimindo e exilando da sociedade. Quando grupos sociais encontram maneiras de sobreviver independente da exclusão e ódio impostas, muitas vezes são criminalizados ou marginalizados, por não cumprirem com as normas da sociedade que a muito tempo já os excluiu. No Brasil temos muitos exemplos do mesmo, mas um inegável é o fenômeno que fez as favelas existirem, embora hoje sejam comunidades orgulhosas de si, elas se originaram da rejeição da sociedade de pessoas que não tinham feito nada para merecer um exílio.

Fonte: SEGA

Fontes: Monografia History of the Yakuza, de Kristinn Árnason. História do Japão, de Kenneth Henshall. Battling the Yakuza, da al-Jazeera. Nerdologia A História dos Yakuza no Japão .


2. Fatal Frame

Fatal Frame, um dos clássicos jogos japoneses que se baseiam em expor uma menina nova e indefesa ao horror de fantasmas e yokais totalmente sozinha. Existem quatro jogos da franquia mas para focar no assunto proposto, irei dissertar apenas o primeiro.

Fatal Frame discorre vários elementos culturais japoneses. Primeiro o fato que a casa em que o jogo se passa tem sua existência debatida na internet, a “Himuro Masion”. Na internet encontramos locais que afirmam ser mito e outros que juram ser verdade. Independente de ser real ou não, eu me sinto confortável em categorizar essa casa como lenda urbana. Suponha-se que a casa era uma estrutura que tinha uma arquitetura que pré-data o período Edo.

Fonte: Koei Tecmo

Embora todo fantasma japonês possa ser considerado um Yokai, o nome que normalmente se usa para fantasma é Yurei (幽霊), pois são necessariamente espíritos de pessoas que já morreram mas que não conseguem encontrar paz.

Diferente dos nossos fantasmas, Yurei não são seres pensantes. Eles não reconhecem família e amigos. São incorporações de sentimentos de rancor, arrependimento, sofrimento e outras sensações muito fortes. Eles vivem no loop da emoção ou acontecimento que os levou a este estado. 

Yurei tradicionalmente não possuem pés, e normalmente aparentam a forma em que morreram ou vestem branco, por ser a cor da vestimenta em que se enterrava os mortos no Japão. A representação de Yurei em fatal frame corresponde a uma retratação quase sempre fiel das origens nipônicas do fenômeno paranormal.

Fonte: Koei Tecmo

Fatal Frame também conta uma história de pureza, onde uma jovem era mantida em um quarto sua vida toda. Na última era clássica japonesa, período Heian, mulheres de classes elevadas eram ao mesmo tempo importantes e prisioneiras. Raramente saiam de casa e eram proibidas de fazerem qualquer tarefa doméstica.

No jogo a menina é mantida em um quarto, pois quando crescesse seria sacrificada para manter a porta do inferno fechada. Porém se apaixona ao ver um visitante. Com medo de que ela não queira participar do ritual, o visitante é morto. Ao descobrir isso, a menina se nega a fazer o ritual, o que causa o libertamente do mal e amaldiçoa toda a mansão.

Duas coisas são representadas: 

Primeiro: A condição que uma mulher de alta classe era tratada, como o fim para um meio (embora mulheres não detinham poder, o filho que poderia vir a ser imperador era criado na casa da família da mãe, onde poderiam doutrina-lo para conseguir influência e privilégios) e com exceção de raros casos prisioneira. Claro que o jogo romantiza muito para o entretenimento, elas não eram mantidas em quartos fechados contra sua vontade, porém a participação da vida social era desestimulara e repreendida com uma mulher rica passando de 3 a 6 meses sem sair de casa. Isso resultou que durante esse período mulheres se tornaram grandes escritoras e artistas.

Segundo: A importância para o japonês da pureza e impureza. Morte era considerada uma das coisas mais impuras possíveis para o japonês, o acontecimento da paixão e recusa do sacrifício transformou o ritual em impuro, desencadeando os acontecimentos do jogo.

No jogo nossa única arma é uma câmera fotográfica, embora não só da cultura japonesa, em eras passadas se acreditava que as câmeras prendiam os espíritos das pessoas dentro de si. Logo a arma mais aconselhavam contra um Yurei, seria a câmera.

Fonte: Koei Tecmo

Fonte: Yokai are not “Japanese ghosts?!”  . Life of Early Japanese Women .


3. 夜廻 / Yomawari

Ah Yomawari, mais um jogo com uma premissa de expor uma menina nova e indefesa ao horror de fantasmas e yokais, totalmente sozinha.

Yomawari significa “Período Noturno” que se escreve 夜回り, porém o título do jogo é escrito com kanjis diferentes que produzem um som parecido mas tem uma ideia visual diferente. Esse tipo de brincadeira com palavras, sons e ideias é bem comum da cultura japonesa, onde parte do sistema de escrita é uma representação visual de ideias, diferente do nosso que é sonoro.

Fonte: Nippon Ichi Software

No jogo somos uma menina que ao passear com o seu cachorro é quase atropelada. Após quase morrer percebe que seu cachorro sumiu. Mais tarde em casa, conta o ocorrido para a irmã que vai procurar o cachorro. Muitas horas se passaram e ela não voltou. Vamos procurá-la e o jogo começa.

A cidade é a típica representação de uma cidade de médio porte japonesa. Todo o ambiente, lojas, konbini (loja de conveniência). Segundo pessoas japoneses sem as lojas de conveniência conhecidas como konbini, o Japão explode. Tudo muito bem representado. É assustadoramente normal, pacato e deserto. Até que do absoluto nada, yokais estão andando na rua (sem máscara).

Fonte: Nippon Ichi Software

Normalmente Yokai é definido como demônio no ocidente, mas essa é uma tradução equivocada. Yokais tem sua origem no xintoísmo e representam tudo que o ser humano não consegue explicar, espíritos, chimeras, guarda-chuvas com olhos e etc. 

Embora yokais sejam literalmente todas as coisas “estranhas” é importante notar que independente de fantasmas poderem ser chamados de yokais, não é muito comum, pois fantasmas são seres que já foram pessoas e por isso podem ser explicados, para esses seres dar-se o nome de Yurei.

O jogo não existe explicação para o que está acontecendo, apenas reagimos aos yokais como qualquer pessoa reagiria. O que torna o absorvimento da cultura mais emocionante, pois yokais não necessariamente tem forma definida. Embora existam alguns famosos e com nome, um Yokai pode ser inventado na hora, e isso dá um jogo uma vibe sinistra de lenda urbana em que nada é entendido e nada tem resposta.

Fonte: Nippon Ichi Software

Com grandes influências da religião Xinto e budista o jogo também nos mostra vários templos. Diferente da cultura ocidental que define as coisas como bem e mal, certo e errado por nossa origem cristã. A cultura xintoísta e budista japonesa define as coisas como puro e impuro e isso dá espaço  (representado no jogo) de atingir um nível muito mais cinza de atos, sentido, razões e explicações.

Por isso o jogo consegue passar sua mensagem apenas com ações e representação visual, onde o sentimento de perda e inquietação se perpetuam. O criador define o jogo como o aprendizado de uma criança sobre a mortalidade. Todavia, cada um terá sua própria definição sobre o que se trata Yomawari, afinal o jogo te da liberdade de tirar conclusões do seu fim.


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